Théo Alves

19/07/2020 00h05
 
Feitiço do tempo
 
 
Desde muito menino tenho a sensação de que domingos são dias melancólicos, algo como o dia de uma tristeza tranquila e sem grandes arroubos, permitida neste mundo em que todos somos proibidos de estar tristes. 
 
É como se a luz do dia mesclasse os azuis e amarelos dos fins de tarde por horas a fio ou os pássaros cantassem as melodias de sempre em um tom abaixo do habitual. As crianças de domingo parecem sorrir e chorar de um jeito mais brando, como se o choro e o riso fossem quase a mesma coisa. E as ruas também emprestam essa cor de alguma tristeza em seu silêncio inabitual, seu vazio, como se conduzissem sempre a lugar algum.
 
Nestes tempos de quarentena, não há como negar que todos os dias são um pouco mais domingos. Essa sensação de fim de tarde constante espalhou-se até sobre as quintas-feiras, que são dias de alguma esperança pela antevéspera dos fins de semana. Então, mesmo diante da correria do home office – que é como correr numa esteira, em que depois de cinco quilômetros de suor continuamos no mesmo lugar – ou das ocupações domésticas, a aura que se arrasta nos domingos à tarde está lá. 
 
Ainda adolescente, vi um filme estrelado por Bill Murray e Andy Macdowell que me pôs a sentir e a pensar àquela época e que é impossível não recordar neste momento: Feitiço do Tempo, de 1993, dirigido por Harold Ramis. Também conhecido como O Dia da Marmota, o filme conta a história de um repórter ranzinza e egocêntrico que fica preso num único dia, que se repete sempre que seu despertador toca às 6 da manhã.
 
Depois de um começo confuso, em que o repórter ainda não consegue compreender claramente esse looping infinito do dia, ele entende que aquela prisão cansativa e tediosa pode trazer-lhe a oportunidade de repensar seu comportamento. No filme, apenas o repórter percebe essa repetição do dia.
 
Não é exatamente esse Dia da Marmota que estamos vivendo coletivamente há quatro meses? O que temos visto não é, de alguma maneira, uma repetição do mesmo dia durante toda essa quarentena?
 
Estamos presos ao mesmo dia, ao que nos parece, nesse misto da melancolia dos domingos e a desesperança das segundas-feiras. Vemos se sucederem os mesmos acontecimentos, desde as mesmas reuniões em teletrabalho até a sensação de que já reviramos todo o acervo da Netflix e que experimentamos todas as variações possíveis das receitas de pão artesanal. Os altos e baixos, as expectativas e frustrações, as tensões e a falta de sono, a sensação fugaz de que tudo está tranquilo e até estamos dispostos a ouvir música... tudo isso compõe o cenário invariável deste feitiço do tempo em que estamos metidos.
 
Temos vivido repetidamente o mesmo dia, os mesmos encontros ou a falta deles, as mesmas ausências, as indisposições, o mau humor, o cansaço, as mesmas paredes, a sensação de que os dias se alternam entre noite e dia sem que mudança alguma aconteça de verdade. 
 
Resta saber se a esperança de que o looping termine é a esperança necessária ou o gatilho da ansiedade para passarmos por estes dias, já que agora todo dia é de fato um pouco mais domingo.
 

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