Bia Crispim

10/07/2020 00h02
 
“A gente não quer só comida...”
 
 
Nesta sexta, quando todes tiverem acesso à coluna desta semana, eu estarei me preparando para fazer a testagem para o COVID-19. Mas não é sobre o exame que quero falar, nem tão pouco sobre o meu estado de saúde, que está estável. Mas sobre a realidade de ser uma travesti vivendo em uma pandemia. 
 
Para a maioria de nós, mulheres trans e travestis, estando em pandemia ou não, o isolamento imposto pela sociedade é uma realidade. Esse isolamento nos coloca numa situação de não visibilidade, o que nos leva ao esquecimento e a enormes privações. Nesse momento, muitas de nós contamos apenas com redes de apoio, através de ONG’s, principalmente, para podermos ter o que comer. Comida e só! Mas não é só de comida que necessitamos.
 
Estando eu em quarentena, me dou conta de que tenho uma rede de amiges que não me deixa faltar nada. Reforço, NADA! Mesmo eu estando trancafiada dentro do meu lar, evitando qualquer tipo de aproximação, a não ser para receber coisas pelo portão de casa, essas pessoas não me esqueceram, não me invisibilizaram, pelo contrário, tornaram-se presença constante, via mensagens diárias através das redes sociais, ou das visitas para me trazerem aquilo de que eu esteja precisando.
 
E é justamente nessas horas de apoio que eu percebo uma série de privilégios a que tenho acesso e me dou conta de que o maior de todos eles é justamente essa rede de amiges. Essa rede de pessoas que, mesmo eu sendo travesti, não deixa de me ver como uma pessoa, como um ser humano. Essa rede de afeto, carinho e cuidado da qual eu gozo e sempre gozei, felizmente. Mas que, infelizmente, não é uma realidade para a maioria das mulheres trans e travestis.
 
Nessas horas também me vem uma reflexão: Por que todas as outras travestis e mulheres trans também não podem compartilhar dessa rede de afeto, carinho e cuidado a que eu tenho acesso? Por que a sociedade não consegue olhar para todas elas como olham para mim? Por que existe essa eleição de quem pode ou não receber tais privilégios?
 
Daí, você me pergunta: De quais privilégios você fala, exatamente? E eu te respondo: Ao privilégio de se sentir amada. De se sentir cuidada. De se sentir importante para os outros. Isso é tão valioso quanto a comida que muitas das travestis e mulheres trans estão recebendo nesse momento pelas ONG’s que cuidam para que elas, no mínimo,  não passem fome. 
 
Titãs já dizia na música “Comida”: A gente não quer só comer/ A gente quer comer/ E quer fazer amor/ A gente não quer só comer/ A gente quer prazer/ Prá aliviar a dor... / A gente não quer só dinheiro/ A gente quer dinheiro/ E felicidade/ A gente não quer só dinheiro/ A gente quer inteiro/ E não pela metade...
 
Retomando o discurso dos Titãs e o que afirmei mais acima, “...não é só de comida que necessitamos,” reforço a urgência de amor, de respeito, de afeto, de carinho, de cuidado... que todas as mulheres trans e travestis, enquanto seres humanos,  têm o direito de vivenciar. Necessitamos nos sentir inteiras, felizes. Necessitamos do prazer que não está relacionado ao sexo, mas às vivências a que todes têm acesso, como a amizade e o sentir-se amada.
 
Deixo aqui, registrado, minha GRATIDÃO a todes que acompanham minha vida, minha luta diária, minha história... E que não me deixam sentir falta de amor, carinho, cuidado, respeito e aceitação. Deixo também um pedido, quase uma oração: Que todes possamos ser capazes de amar ao outro indiscriminadamente. Que possamos suprir as necessidades dos outres sem preconceitos. Que possamos abraçar todas as manas trans e travestis nessa rede de amor, porque “a gente não quer só comida...”
 

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