Théo Alves

28/06/2020 00h02
 
A fogueira fria de São João e o fim do mundo
 
 
As festas juninas costumam fazer parte de nossa formação cultural e afetiva e seus símbolos compõem nosso imaginário para os meses de inverno, ainda que brando no Nordeste. É comum ouvirmos o quanto as pessoas amam junho por suas festas tradicionais; pelos pratos como canjica, pamonha, milho cozido, assado; pelas quadrilhas e outros eventos festivos; pelo clima mais ameno e tantas coisas mais. 
 
Um desses símbolos mais frequentes, ainda que contestado e alvo de polêmicas nos últimos anos, são as fogueiras que se acendem para celebrar os dias dos principais santos da tradição: Antônio, João e Pedro.
 
Tendo crescido no berço de uma família católica, minhas memórias afetivas estão repletas dessas fogueiras e de lembranças muito queridas. Minha avó costumava conduzir as cerimônias para dias como o São João, que concentrava nossas maiores fogueiras e a maior quantidade de comida. Numa casa em que a única presença masculina era a minha, ainda muito menino, a tarefa viril de arrumar a fogueira cabia a minha avó ou minha tia. Eu ajudava ao não atrapalhar, limitando minha participação a carregar alguma lenha ou juntar trapos para acender o fogo. 
 
Lembro-me do quanto me sentia parte daquele ritual tão esteticamente significativo para uma criança como eu. A ansiedade para que o relógio chegasse à hora do anjo e a fogueira recebesse autorização para queimar, o cheiro de querosene pingado nos trapos, o fogo nascendo aos poucos, controlado pelas mãos mágicas de minha avó e como ele começava a se levantar, desde as pequenas labaredas acordando os galhos ainda verdes para depois nos lamber as bochechas vermelhas de calor. 
 
Verdade que o fogo é um elemento carregado de muitos significados em nossas tradições. Mas aquelas fogueiras que eu via se erguerem enquanto eu crescia estavam carregadas de uma simbologia muito íntima e nossa, que incidia mesmo sobre nossos destinos: eu assistia ansioso à minha avó fazer uma simpatia em que precisava ver seu reflexo a partir da luz da fogueira em uma bacia de água, por exemplo. Enxergar a imagem refletida era um sinal de que ela estaria ali no ano seguinte. Eu devo confessar que algumas vezes não vi sua imagem, mas nunca admiti isso, senão agora. Assim eu aprendi que minha palavra era capaz de subverter a verdade trágica dos acontecimentos, o que somente muito depois pude compreender se tratar de uma lição de poesia.
 
Este ano, o ano da pandemia, relegou à recordação esporádica os rituais dessa tradição junina. As fogueiras estão frias, apagadas nas ruas de lembrança deste São João que não há. Eu, que não tenho acendido fogueiras desde que minha avó deixou de estar entre nós, me dei conta de que a noite de 23 de junho esteve mais morna, como se feita só das cinzas do dia seguinte. As poucas fogueiras que ousaram acender hoje não fazem desta uma noite de São João, são insuficientes, pálidas, que morrem rapidamente como um fogo feito apenas de lenha seca.
 
Parece que 2020 é mesmo o ano em que o mundo acabou. Minha avó dizia que acendíamos as fogueiras para que São João não dormisse, do contrário o mundo estaria em risco. E eu sei que ela tinha razão, afinal nunca a vi errar uma previsão: se ela dizia “vai chover”, por exemplo, sempre chovia, mesmo que isso demorasse meses. Por mais que eu tenha me perdido da religião de nossa casa, nunca me perdi da fé em minha avó e nas coisas que ela me ensinava pelo exemplo, pela tradição e pelo sonho. E é com alguma tristeza e alguma esperança que neste momento testemunho o fim do mundo, em um dia perdido nos estertores de junho.
 

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