Théo Alves

24/05/2020 12h40
 
Para voltar à normalidade
 
 
Durante as despedidas em minha última aula online antes do recesso escolar, antecipado devido à quarentena que estamos vivendo, um aluno me fez uma pergunta que era quase um pedido de socorro: professor, quando tudo voltará ao normal?
 
Nem quando meu filho Guilherme me perguntou quem era Deus, por volta de seus quatro anos, senti tanta dificuldade em dar uma resposta tão prontamente. Eu não podia mentir para ele e seus colegas, certamente ansiosos por uma resposta positiva, mas também não tinha o direito de destruir suas esperanças no retorno a uma ideia de normalidade como zona de conforto das coisas já conhecidas, do mundo a que já estavam adaptados, mesmo em face de todas as injustiças e crueldades que este mundo antes da pandemia já fazia pipocar aos montes.
 
Eu disse a ele não saber quando voltaríamos à normalidade, mas que em breve estaríamos todos juntos de alguma forma. Não creio ter sido essa uma resposta que satisfizesse sua angústia nem a minha, mas a era a única de que eu dispunha para aquele momento. Eu queria mesmo poder dizer a ele que o mundo havia acabado e essa seria nossa chance de construir algo novo, mais justo, honesto e melhor. Que a normalidade como a conhecemos não existe nem cabe mais no novo agora. Eu queria dizer que o mundo a que nos acostumamos havia chegado ao fim, ainda bem. Porém, há coisas que devemos descobrir sozinhos e os jovens ainda têm tempo.
 
O pensador Ailton Krenak, que vive em uma aldeia indígena com cerca de 130 famílias próxima ao Rio Doce, afirma em seu livro “Ideias para adiar o fim do mundo” (publicado em 2019) que há uma humanidade dita “bacana”, segundo os padrões europeus de colonização, e uma “sub-humanidade”, que ainda está agarrada à terra, como os índios, os aborígenes e comunidades da África e Ásia. Para Krenak, nós humanos vivemos uma “abstração civilizatória” absurda, completamente descolada da terra, pois construímos um mundo artificial em que paradoxalmente é preciso preservar miúdas porções de terra para que no futuro possamos andar por elas como quem anda sobre uma memória do que já não existe mais. 
 
Nós deveríamos aprender com os krenak e outros povos que o fim do mundo se repete com alguma frequência e que é preciso saber vivê-lo, compreendê-lo como natural. Somos apegados demais ao mundo miserável que construímos e onde somos algozes e vítimas da exclusão, do esgotamento, da exploração, do cansaço, da injustiça, da mentira e de valores enviesados que capengam em um mundo cheio de ausências. Temos a chance de erguer algo novo a partir de agora, de consertar muitos dos erros que cometemos, de cancelar nossa vilania, mesmo que essa oportunidade não tenha sido construída por nós. E isso é mais um desejo que uma expectativa.
 
Por isso, espero que daqui a um tempo, se algum aluno tornar a me perguntar quando voltaremos a essa normalidade, eu possa dizer com alguma serenidade: se tudo der certo, nunca mais.
 

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