Andreia Braz

16/05/2020 00h02
 
Maria
 
Se tem uma coisa da qual nos queixamos no mundo moderno é da falta de tempo. E usamos isso como desculpa para um monte de coisas, inclusive não telefonar ou marcar um encontro com um amigo ou familiar que está enfrentando alguma dificuldade. O problema é que algumas coisas irreversíveis podem acontecer nesse meio-tempo. Foi exatamente essa a sensação que tive ao receber a notícia do falecimento de uma jovem que eu não conhecia, mas por quem nutria um certo afeto e desejava que pudesse restabelecer sua saúde. 
 
Quando Helena, sua tia e minha amiga, contou-me a história daquela menina que passou no vestibular depois de enfrentar um tratamento severo contra a leucemia, passei a admirá-la imediatamente e senti vontade de conhecê-la tão logo fosse possível. Queria saber mais sobre aquela jovem que encontrou forças para estudar e realizar seu sonho de tornar-se uma profissional da área de saúde em meio a uma rotina extenuante de exames, consultas e procedimentos diversos. Uma nova recidiva da doença, no final do ano passado, exigiu mais uma pausa e deixou a família apreensiva. Cheguei a doar sangue para ela nesse período. Estava confiante na sua recuperação e tinha a esperança de conhecê-la pessoalmente.
 
Três meses depois, enquanto me dirigia ao hemocentro, dessa vez a doação seria para uma criança, lembrei daquela jovem que estava enfrentando, mais uma vez, a batalha contra o câncer. Infelizmente, eu não estava muito a par do seu estado saúde e na manhã seguinte recebi a notícia do seu falecimento. Ao receber a mensagem fiquei sem reação. Em outros tempos, teria me dirigido até o centro de velório, mas em época de pandemia (coronavírus), o velório e o sepultamento ficaram restritos a um pequeno grupo de pessoas. As aglomerações devem ser evitadas para conter o avanço da doença.
 
Somente à noite consegui falar com Helena, além de demonstrar minha profunda tristeza, pedi desculpas pela ausência nos últimos meses. Sei que nada pode aplacar sua dor nesse momento, mas queria estar ao seu lado e poder ofertar meu carinho e atenção. 
 
Tão logo acabe o isolamento social, nos encontraremos para tomar um café com bolo, como fazíamos no período em que cursamos juntas algumas disciplinas no curso de Biblioteconomia. Ela não pretende atuar na área, seu intuito era adiantar algumas matérias e dar continuidade ao curso de Psicologia, interrompido para que pudesse se dedicar à sobrinha durante a primeira fase do tratamento. Aliás, achei tão bonita essa sua devoção. Nem posso imaginar a gratidão de Maria por desfrutar de um amor tão puro como esse, além de todos os cuidados dos demais familiares e do namorado. Helena não tem filhos e se dedica muito aos sobrinhos. Maria era um dos seus xodós. Tenho certeza que sentia muito orgulho da tia, que agora vai seguir seu caminho cheia de saudade e grata pela jornada que vivenciaram juntas. É muito religiosa e sua fé lhe dará uma parte da força e coragem de que necessita para encarar a partida precoce da sobrinha e seguir em frente. 
 
E por falar em partida precoce, o namorado de Maria prestou-lhe uma última e comovente homenagem nas redes sociais. Ele conta um pouco da história do casal e reforça a leveza com que a amada encarou o processo doloroso que viveu, deixando um legado de amor e resiliência para os que ficam, e sobretudo para os que tiveram o privilégio de conviver com ela. É exatamente isso que está demonstrado nas inúmeras homenagens dos amigos e familiares, que ressaltam, especialmente, sua empatia, afetividade e bom humor. 
 
Eles começaram a namorar ainda no ensino médio, mas a vida os surpreendeu e em pouco tempo estavam encarando juntos a rotina de hospitais, quimioterapia, radioterapia, doação de sangue/medula óssea... A praia, o cinema e as festinhas com os amigos eram alternados com os cuidados relativos ao tratamento de Maria. E faz um pedido aos que a conheceram: “[...] guardem a lembrança do seu sorriso, a pureza do seu coração, a sua infinita bondade”. Encerra a homenagem assim: “Estarei até os meus últimos dias lembrando de você. Te amo hoje e te amarei eternamente, meu primeiro e eterno amor”. Bem que poderiam ser dele estes versos de Cazuza: “Amor da minha vida, daqui até a eternidade, nossos destinos foram traçados na maternidade”.
 
Ao terminar de ler a mensagem, com os olhos marejando, não puder pensar em outra coisa que não a felicidade deles, apesar de tudo, por terem um ao outro ao longo dessa jornada de tantas descobertas, aprendizados, incertezas, dores, esperança, alegrias... Afinal, como disse o cineasta Domingos Oliveira, em uma entrevista, o maior legado da vida é o amor. 
 
Em uma das redes socais de Maria, uma frase me chamou a atenção: “Ame sua jornada”. Com essa breve sentença, ela nos deixa uma mensagem profunda, cortante. Talvez tenha sido esse o seu segredo, encarar com fé e resiliência a sua jornada aqui na terra. Talvez ela soubesse, assim como Rainer Maria Rilker, que “Há uma estranha, devoradora felicidade quando agimos com a total convicção de que, qualquer que seja a coisa que estamos fazendo, esta pode muito bem ser a nossa última batalha sobre a terra”. 
 

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