Renisse Ordine

14/05/2020 00h02
 
Elza Francisco: Uma entrevista em versos
 
A poetisa e escritora é a voz libertadora do Vale do Paraíba. Uma dama valente, questionadora, que não se intimida com as tarjas pretas que insistem a vedar os nossos olhos. Ao contrário, ela se utiliza da beleza da arte para confrontar essa resistência. Com suas palavras inquietas e doces ao mesmo tempo, pinta a realidade; com suas fotos, ela simboliza a filosofia que reina na natureza. Um duelo entre a existência e sobrevivência. 
 
1- Quem é Elza Francisco?
 
Sou Mãe, sou Mulher, sou Avó.
Sou...
o paradoxo
a dialética.
o caos.
Sou um passarinho
à  busca de ninho.
Sou anjo.
Sou demônio.
Sou a luz que alumia
a  escuridão da minha travessia.
Sou...
a  alma em chamas,
a  entropia,
o  viver em contradição.
Sou emoção.
Sou razão.
Sou...
um ser em ebulição!
 
2- Os primeiros versos que caracterizam a poesia social surgiram no inicio do século, tendo Castro Alves dentre os pioneiros, vindo a ser importante na época da ditadura. E você, quando apareceram os primeiros versos sociais em sua vida.
 
Vivi cinco anos ao lado de um Complexo Penitenciário, com quatro mil detentos. Do meu quarto, nas noites mais silenciosas, ouvia a conversa dos presos. 
Nesse período, fui diretora de uma Escola Agrícola e a casa onde eu habitava foi construída para a residência do diretor da Escola. Sozinha, morando numa edificação com seiscentos metros quadrados, no ambiente da fazenda escola, tinha como companhia o segurança que me acompanhava todo o tempo.
Momentos muito difíceis. Eu, também, estava privada da liberdade, como os meus vizinhos ao lado.  Meus principais companheiros eram o silêncio e o imaginário. Foi ali, debaixo do céu mais bonito que já conheci que percebi o valor das pequenas coisas, como observar a dança dos pirilampos. Aprendi, também, que precisamos de muitos poucos recursos para viver. A sociedade consumista, fruto das políticas do capital, transformou o ser humano escravo dos seus desejos materiais. 
Ao mesmo tempo, senti na pele a diferença social que nos remete a profundas reflexões. Sem discutir o mérito da presença daquelas pessoas isoladas do mundo, percebi a dualidade no mundo da fantasia, no qual vivemos. Uns... Com tantas oportunidades, outros jogados à própria sorte. A maioria homens presos estavam com menos de trinta anos, negros, baixa ou nenhuma escolaridade. 
No complexo penitenciário feminino o que chama a atenção é o alto grau de abandono, cenário de mulheres mães, esposas, filhas, que por alguma razão cometeram atos infracionais e foram parar num presídio, onde raramente recebem visitas. É gritante a desigualdade nas relações interpessoais entre a família e a detenta.  Os homens são contemplados pelo acolhimento da família e o olhar mais complacente da sociedade.
 Diante dessas constatações, surgiu a minha inquietação política, social, humanitária, em forma de versos. O reverso do mundo estava configurado na dialética do viver e dos saberes. 
A oralidade estava muito distante do meu alcance. Ouvidos moucos permeiam a sociedade e as autoridades.  A minha escrita poderia registrar as minhas angústias sociais.
 
3- Brasil, política e sociedade. O campo de pesquisa social é extenso em nosso país. Mas, dentre eles, o que mais te aflige?
 
            Ano de eleição...
A aflição e a desilusão caminham juntas.
Não vejo esperança.
A desconstrução da Educação
baniu o espírito crítico 
para a grande maioria da população.
Os valores estão invertidos.
A desigualdade social é abissal. 
Se hoje posso pensar,
Amanhã... Pode ser que não.
Expressar a minha vontade,
gritar a minha emoção
poderá ser parte do passado.
O brasileiro acostumou-se
 à servidão voluntária.
Parece normal,
mas é arbitrária.
 
4- É muito prazeroso acompanhar o seu perfil social, além de acompanhar os seus versos, podemos também ver lindas imagens que cria uma harmonia entre o que se lê e o que se vê. De onde vem tamanha inspiração?  
 
Eu gostaria que os meus versos fossem dançarinos.
Que bailassem num cenário feminino, leve, sereno...
Quando eles chegam de mansinho,
o imaginário, devagarinho...
busca a imagem do cantinho, 
e  os abriga no berço da poesia.
O verso e a imagem se entrelaçam,
naturalmente.
Pura magia.
 
5- Você faz parte do grupo Escritores Revisionistas do Vale, um grupo que participa das feiras literárias do Vale do Paraíba que trata principalmente da situação da mulher escritora. Sendo parte desse trabalho você percebe que a literatura é capaz de salvar uma vida e que a expressão através da escrita é capaz de sensibilizar mais do que a oralidade? Ou seja, a escrita salva?
 
Participar do Grupo Escritores Revisionistas do Vale é uma grande honra para mim. Costumo dizer que sou apenas uma escrivanhadeira, aprendiz de feiticeira. Estou ao lado de grandes escritores, pessoas com altíssima competência, sob a batuta da brilhante Renisse Ordine, com predicados belíssimos. Sou muito grata por esse Encontro. Encontro de almas, de trajetórias, de vidas vividas e de múltiplos saberes. 
Trabalhei muitos anos com documentos, registros... Tudo deveria ser formalizado, escrito. A história exige registro dos fatos.   É a testemunha de uma época, de um acontecimento, das políticas vividas, pensadas, filosofadas, praticadas. E, quando tudo isso acontece com a permissão da poesia, tudo fica mais bonito. A escrita é capaz de salvar uma vida, porque a escrita liberta emoções, sentimentos e planeja caminhos possíveis e busca roteiros impossíveis, mas factíveis.
No passado, mulheres não deveriam ter acesso à escolaridade por conta do possível perigo do encontro com as verdades. A submissão ao homem estava intimamente ligada ao desconhecimento de outros mundos, outros encontros e saberes. O Grupo Escritores Revisionistas do Vale busca esse debate e expressa o papel da Mulher como protagonista do seu viver, sempre do ponto de vista da Literatura. 
 
Mulher...”Não te deixes destruir ajuntando pedras.
                   ... recria a tua vida. (Cora Coralina)
 
Parabéns, Escritora Renisse Ordine. A construção do Grupo Escritores Revisionistas do Vale abre horizontes, eleva a Mulher, distribui saber e sabedoria. Obrigada!
 
6- Seguindo essa linha de raciocínio, o quanto a mulher Elza Francisco se sente salva e fortalecida?
 
Sinto-me muito fortalecida
 quando sou a minha biografia.
Escrevo o que está escrito.
Salva...
quando registro as ranhuras das minhas inquietações.
 
7- Pesquisas apontam que os gêneros textuais em geral são apresentados nas salas de aula de modo maçante o que vem a dificultar a interação prazerosa do aluno com a literatura. Como educadora você concorda com essa afirmação? 
 
Nas primeiras séries, aos 6 ou  7  anos,  ganhei o meu primeiro livro “Ali Babá e os quarenta ladrões”. Um livro grande, cheio de letras pequenas, sem desenhos e imagens.  Li um pouco e nunca mais me interessei por ele.
Naquele tempo, a Escola usava um livro de leitura para cada série. Eu gostava muito daqueles textos. Mas eu gostava mesmo, era das historinhas em quadrinhos, as charges dos jornais e revistas e das oralidades da contação das histórias. Alunos precisam de textos e de leituras interessantes. A escola precisa praticar a empatia e desvelar a leitura como algo lúdico e importante.  Precisa, sobretudo, destacar o mundo maravilhoso do imaginário e a importância de saber ler o mundo, traduzi-lo e praticar as inferências desejadas e necessárias.
 
8- O escritor Artur da Távola dizia que a poesia social é um desabafo que abafa a palavra oral, ou seja, ao invés de você gritar você se interroga sobre as coisas. O quanto você percebe que a poesia social causa mais alivia em você do que falar diretamente a uma pessoa ou a um grupo? 
 
Quando me expresso através da poesia social, procuro demonstrar a minha indignação sobre fatos que ferem principalmente os direitos de todos os cidadãos. A injustiça, a desigualdade social, as políticas de favorecimento e a abissal diferença no trato com as pessoas, causam-me uma instigante procura da compreensão das razões que levam um ser humano à insensibilidade e à  crueldade com os seus iguais. 
Essa inquietude trago comigo desde a mais tenra idade. Segui o caminho da Educação acreditando na Educação Transformadora. “Educação muda às pessoas. Pessoas transformam o mundo.” (Paulo Freire).
Quando escrevo posso fazer a mensagem chegar ao responsável pela questão abordada. Não terei acesso às pessoas, às autoridades, para a comunicação através da oralidade. O tempo, o espaço, as agendas e protocolos e as importâncias são fatores impeditivos para o caso. Ao escrever os meus poemas, expressar minhas angústias, sinto-me aliviada.
Realmente, a poesia social escrita abafa o grito contido na garganta. Concordo com Arthur da Távola.
 
9- Você se lembra de quais foram os seus versos mais tristes?
 
No cenário inóspito e diferente da Escola Agrícola, ao lado do Complexo Presidiário, senti muito medo e uma profunda solitude. Sentia-me impotente diante dos ares da dualidade humana, indiferente à desumanidade reinante.  
Tornei-me uma poetisa triste e triste eram os meus versos.
Medo castrador
Um dia...
senti muito medo.
medo de crescer,
de atravessar o rio,
da escuridão da noite,
das vozes dos presidiários.
Homens e mulheres
viviam ao meu lado,
escravizados
 pela sina
que dizima
a sociedade deseducada.
Lá fora...
noite recebia o brilho das estrelas,
o bailar dos pirilampos,
o eco da sinfonia
regida pela saparia.
Mas...o medo,
Ah!...o medo
subtraiu o meu viver.
Balançou o meu coração
com medo de morrer!
 
 
10- Para finalizar, quais são os versos que você mais espera escrever? 
 
Eu gostaria de escrever sobre a realização dos meus quereres:
um mundo harmônico, justo, humano, sem fome, sem choros.
Um mundo florido, colorido, perfumado.
Um mundo sem as distâncias afetivas e amorosas.
Um mundo leve, sorridente, sem pressa.
Um mundo sem portas, sem janelas, sem relógios.
Um mundo sem divisórias, sem classes, sem raças.
Um mundo com a prece universal: amor!
O outono já chegou e com ele registro os versos dos meus quereres.
Meus quereres.
Ao longo da caminhada,
abracei novos  quereres.
Tenho dois pés,
ávidos pela areia,
pela relva que afaga
a minha passagem
aos cantinhos
mais sublimes da poesia.
Pura magia!
Para cobrir o meu corpo,
basta um leve paninho,
que não pese na bagagem
e não me impeça sentir a brisa ao amanhecer.
A pintura do meu rosto
entrelaça-se com as marcas do tempo,
anuncia o advento
coberto de novos quereres.
Meu cabelo molhado
baila sorridente,
acena com  o balanço do vento,
anuncia um novo sentimento.
A mala quase vazia,
está leve, sem ironia,
carrega os poucos quereres,
perfumada pela poesia!
 
 
Elza Francisco, Pedagoga, com Especialização em Planejamento e Gestão da Educação Profissional, exerceu a função de Diretora de Escola da Rede Estadual de Educação do Estado de São Paulo e Diretora de Escola Técnica do centro Paula Souza. Aposentada, dedica-se à escrita e à fotografia.
 
Em parceria com o seu filho Luiz Augusto Moreira da Silva, GUTO, Artista Plástico, publicou recentemente o Livro infantil “Os Cachinhos de Madalena”, dedicado à neta Madalena, com 5 anos.
 
Mora em Lavrinhas, Estado de São Paulo.
 
Divorciada, é mãe de três filhos e avó de cinco netos.
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).