Bia Crispim

03/04/2020 00h04
 
 
Sobre privilégios e vulnerabilidade
 
 
Sexta-feira passada, 27 de março, estava tendo uma conversa via Whatsapp com uma velha amiga, a Vannila Vogue, uma amável, carismática e divertidíssima Drag Queen das badaladas noites de sábado dos espaços LGBTQIA+ espalhados pela capital Potiguar. 
 
Falávamos sobre o isolamento, sobre como estávamos vivenciando esse momento, quando em uma de suas falas ela disse que o confinamento: “Tá servindo para eu enxergar ainda mais meus privilégios de ter esse espaço confortável e amplo para estar confinada. Pensar no outro e desejar um mundo com menos desigualdade.” E isso nos rendeu um bom papo acerca de como tão poucas de nós, trans, travestis, drags tivemos o gozo de certos privilégios como uma educação integral, alimento diário, lar, família acolhedora, trabalho formal entre outras coisas que, numa sociedade justa, deveriam estar ao alcance de todxs.
 
A desigualdade da qual ela falou é uma realidade de desigualdades que se somam. A exclusão, o abandono, o trabalho informal, a prostituição como meio de sobrevivência, a falta de escolarização, o preconceito, a violência e mais tantas coisas que podemos elencar aqui se acumulam sobre a figura do travesti, da mulher e do homem trans, de algumas Drag Queens esquecidas em seus anonimatos.
 
Na mesma semana, Jaqueline Brasil, presidente da Atrevida/RN – entidade que luta incansavelmente por direitos e construção de políticas públicas para a população LGBTQIA+ do estado – havia me questionado: “Por que você não fala sobre a situação de vulnerabilidade da população trans que está em situação de rua, entregue à prostituição, à informalidade e a própria sorte, principalmente agora, nessa quarentena?”
 
Daí eu fui buscar por dados e o primeiro que encontro é uma postagem da presidenta da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), Keila Simpson, pedindo ao presidente deste país que assinasse o mais breve possível a MP que possibilitaria às pessoas em situação de baixa renda e autônomos, entre elas as mulheres trans, (trabalhadoras informais, ambulantes, vendedoras, manicures, cabeleireiras, prostitutas...) uma renda mínima para que essas pessoas saíssem das ruas e assim, não estivessem expostas à contaminação nem a propagação do COVID-19. 
 
E eis que aqui eu me deparo com duas realidades: a de privilégios por parte de tão poucas de nós (E aí eu me incluo, pois me sinto privilegiada por inúmeros fatores) e a situação de vulnerabilidade daquelas que por n motivos não alcançaram os mesmos privilégios. E se não alcançaram tais privilégios, não foi por incapacidade, nem porque não trabalharam, muito menos porque não são inteligentes ou porque gostam de viver na malandragem. O preconceito, a exclusão, o abandono, os olhares tortos jogaram a maioria dessas pessoas para a sarjeta e o ostracismo como se a subumanidade fosse o espaço ideal para essas pessoas transgressoras do padrão de “normalidade” imposta pela sociedade.
 
O grande culpado da divisão entre os privilegiados e os vulneráveis é a sociedade civil e o poder público que não conseguem enxergar a igualdade que nus une enquanto espécie. Não criamos chances nem incentivamos essas pessoas a se desenvolverem em suas potencialidades, pois lhes fechamos os espaços de convívio social como a família, a escola, a igreja, a universidade, o mercado de trabalho formal. Fechamos os olhos para nossas irmãs trans e travestis que em plena pandemia, abandonadas pela sociedade, driblam a própria sorte pra sobreviver em seus subempregos, algumas sendo exploradas por cafetinas e cafetões nas ruas das grandes cidades. Mas por mais que nos queiram inexistentes, estamos aqui.
 
Em 29 de janeiro comemoramos o dia da visibilidade trans, e em alusão a essa data a ANTRA trouxe para o debate público, em 2018, o tema “Resistir pra Existir, Existir pra Reagir”. E apesar de sermos invisíveis, para muitos, estamos resistindo, (a maioria em estado de vulnerabilidade, é verdade), existindo, reagindo e ocupando espaços de privilégio, pois é privilégio o que queremos!
 
OBS: O movimento trans precisa de sua ajuda com doações de gêneros alimentícios e materiais de higiene pessoal.
 
Para doações, procure:
 
ATREVIDA/RN – Rua Manoel Vitorino, 950 (casa B), Alecrim, Natal;
ATRANSPARÊNCIA/RN – Av. Bernardo Vieira, 1847, Alecrim, Natal;
CASA BRASIL – Rua Nova Jerusalém, 26, El Shaday, Extremoz/RN;
ATREVA-SE/Santa Cruz – Rua Nossa Senhora das Dores, 197, Cônego Monte, Santa Cruz/RN

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