Andrea Nogueira

01/02/2020 00h07
 
O crime pobreza
 
 
Não faz muito tempo, havia no código penal brasileiro um dispositivo que punia pessoas com pena de prisão simplesmente por serem mendigos. Para uma geração mais nova, esclarecida e combativa das desigualdades sociais isso parece surreal, mas é fato. Um fato assustador.
 
Mendigar era crime e somente no ano de 1940, o Código Penal amenizou esta ação para considerá-la uma contravenção penal. Na verdade, não melhorou tanto, já que contravenção penal pode ser compreendida como um crime "pequinininho". Assim, mendigar deixou de ser crime mas o estigma da criminalidade não saiu da lamentável situação de pobreza suportada pelo mendigo.
 
O artigo 60 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688/41) trazia a seguinte redação: "Mendigar, por ociosidade ou cupidez será punido com pena de prisão simples, de quinze dias a três meses." A mendicância como infração penal foi definitivamente abolida no ano de 2009, por força da Lei 11.983/2009.
 
Aproveitando o arrepio que certamente está ocorrendo na pele de quem se indigna com todo tipo de tratamento desleal com o pobre, anote-se que a contravenção penal de mendigagem era inafiançável. Assim, caso mendigasse seria preso. A solução para sair desse mergulho no mundo dos criminosos era vencer financeiramente. Se não conseguisse, paciência... prisão nele!
 
Obviamente a lei passou muito tempo vigente, mas em desuso. Ocorre que o desuso, como se sabe, não revoga a lei no plano formal, afetando apenas a sua eficácia no plano sociológico. Noutros termos, percebeu o judiciário que a lei era discriminatória e elitista, além de um verdadeiro atentado à dignidade humana. Assim, os Juizes tentava reanimar o país com ideias de construção social face aos menos favorecidos, enquanto o legislativo permanecia inerte, tanto que só aboliram este tipo de infração penal do nosso arcabouço legal há 11 anos.
 
Sendo o Brasil um país extremamente influenciado por leis e não por ideias, a sociedade passa muito tempo para absolver práticas de humanização e de combate às desigualdades que oprimem pobres por serem pobres. Brasileiros, de um modo geral, passam longos anos para conceberem uma ideia a partir da construção consciente de cidadania, pois são acostumados a caminharem sobre regras jurídicas. Uma pena, pois nossas leis não são totalmente adequadas para sustentar-nos dignamente. Esta verdade fundamenta-se, por exemplo, na vigência do crime de vadiagem, que prevê punição à pessoa habitualmente ociosa, mesmo sendo válida para o trabalho, mas que não tem renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência. Noutras palavras: pobre sem trabalho remunerado se encaixa nesse perfil legal do universo criminal brasileiro - pois é um vadio.
 
O fenômeno da indigência merece relevante atenção no que se refere ao instituto da cidadania. Atenção para modificarmos o quadro social e não para simplesmente separar mendigos de pessoas "financeiramente viáveis", fechando a porta das oportunidades e das providências obrigatórias por parte do Estado.
 
Há muito para ser feito, cabendo a todas as pessoas a responsabilidade e participação nos processos de inclusão social.
 

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