Ana Carolina Monte Procópio

25/11/2019 01h13
 
 
SOLIDÕES
 
 
A solidão é fera, a solidão devora
É amiga das horas, prima-irmã do tempo
E faz nossos relógios caminharem lentos
Causando um descompasso no meu coração.
SOLIDÃO – Alceu Valença
 
Sentimento mais que cantado, tema frequente da poesia e da literatura. Aprendi certa vez num retiro espiritual que nunca se está verdadeiramente só. Que todo ser é, no mínimo, um condomínio de células, micro-organismos e bactérias. Nada existe só, de forma independente; não se pode, física e biologicamente, estar-se sozinho. Esse conhecimento técnico, no entanto, não afasta um sentimento frequente de solidão. Essa solidão é existencial, não biológica.
 
E esse parece ser um mal da contemporaneidade. Em tempos de relações virtuais, nunca foi tão grande a possibilidade de conexão. No entanto, é gritante o isolamento e a sensação de não-pertencimento. Por trás de fotos sorridentes publicadas nas redes sociais, são comuns a tristeza, o vazio e o semblante sério logo após a selfie imediatamente postada. Quase como uma obrigação, sente-se a necessidade de compartilhar com a multidão de ‘amigos’ e ‘seguidores’ tudo o que se está fazendo e sentindo. E esperar os “likes”, o que gera uma falsa sensação de grupo, de comunidade, talvez um sentimento de conforto.
 
Toda a história humana foi calcada na ideia e prática da união comunal. Não estivessem unidos em famílias, clãs ou pequenos grupos – que foram crescendo com o passar do tempo – os seres humanos não teriam sobrevivido nem tampouco criado uma cultura e a própria História. Esta é o registro da passagem, atitudes e modo de viver da espécie humana, em muito rápidas e impróprias palavras. 
 
Como, então, morre-se hoje de solidão? Reproduzo aqui o pensamento do grande escritor moçambicano Mia Couto, no seu livro E se Obama fosse africano: “Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. (...) Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco.” 
 
Mia fala dessa solidão moderna, desse estar-só mesmo em meio a uma multidão, dessa eterna falta de tempo e de oportunidade para costurar vidas, sentimentos, relacionamentos. Para fazermos uma ‘aldeia de homens’, como lindamente disse Exupèry em Terra dos homens. Nessa passagem tão emocionante do citado livro, Exupèry conta como ocorreu um problema com um dos aviões da companhia e como os outros dois que voavam junto também tiveram que descer e, com isso, ele e os companheiros passaram a noite no meio do deserto do Saara, entre luzes de velas e histórias brotadas do mais profundo de cada um. Diz ele: “Assim, em pleno deserto, na crosta nua do planeta, num isolamento dos primeiros anos do mundo, construímos uma aldeia de homens. (...) E não sei o que dava àquela noite um gosto de noite de Natal. (...) Contudo, naquele círculo de areia mal-iluminado, cinco ou seis homens que não possuíam mais coisa alguma no mundo a não ser suas lembranças trocavam invisíveis riquezas. Nós nos havíamos, finalmente, encontrado. Anda-se lado a lado muito tempo, cada um fechado em seu silêncio, ou trocando palavras que não encerram nada. Mas eis a hora do perigo. Então vem a ajuda mútua. Descobre-se que se pertence à mesma comunidade. Cada um se enriquece com a descoberta de outras consciências. Então os homens se olham com um grande sorriso. E parecem prisioneiros libertados que se maravilham com a imensidão do mar.” Peço desculpas pela citação tão longa, mas esse livro é tão envolvente, tão bonito, que deveria ser transcrito por inteiro; ou melhor, deveria ser lido universalmente, como um libelo a favor das relações humanas fraternas, amorosas, plenas. Porque a única forma de combater a solidão é com a presença, a união. Nenhum segredo. Mais uma vez, nada de novo sob o sol. 
 
Solidão não é estar-se só fisicamente. Não, solidão é sentir-se só interiormente. Como disse Francisco Buarque de Holanda, “solidão é quando nos perdemos de nós mesmos”.
 
Esse sentimento tão doloroso pode ser também uma grande fonte de crescimento, quando nos permitimos sentir o vazio, quando o aceitamos e nele nos achamos. E isso é um grande presente: entendermos que somos um inteiro e que temos uma vida que não depende de muletas. “... Que minha solidão me sirva de companhia.
Que eu tenha a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo.” (Clarice Lispector).
 
Outra coisa muito diversa desse necessário encontro interior e pessoal é vivermos entre iguais, entre irmãos, amigos, pessoas várias, que nos enchem de uma outra e mesma humanidade e nos permitem o dom supremo de partilhar, de dar e receber. Disso, acho, anda o nosso tempo muito necessitado. De menos pressa e mais carinho, de menos trânsito e mais auroras, de menos compromissos e mais encontros. De menos produtividade e mais afetividade. De mais risos e mais alegria. 
 
Há um livro que li já este ano e que me marcou profundamente, chamado A Sociedade do Cansaço, do coreano Byung-Chul-Han, que discorre sobre como nos tornamos seres meramente produtivos, como aceitamos isso passivamente e ainda achamos importante estarmos sempre ocupados, sempre potentes, sempre em desempenho, o que causa o que chamou de “infarto da alma”. De fato, parece que estamos infartando em massa, literal e simbolicamente. 
 
Voltar às coisas simples, voltar-se para dentro, para o convívio com os outros, com as outras partes de nós, será que não nos faria mais felizes? Eu acredito sinceramente que sim. Mais uma vez me socorro dos poetas, que parecem saber tudo sobre o mundo. Talvez porque tenham tempo e vontade de senti-lo... “A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.” (Vinícius de Moraes).
 
Sobre a dolorosa solidão que nos abate, apenas o reaprendizado da vida em comum pode servir de cura. Conviver pode ser difícil, trabalhoso, mas é a missão humana por excelência; é aquilo que viemos fazer nesse mundo; é o exercício da própria humanidade; o que nos difere dos outros seres vivos: o fato de termos consciência de nós mesmos. E com essa consciência emerge a convicção de que não estamos sós e que somos parte de um todo. Que não mais nos mate a solidão, mas que o saber de sua presença constante nos impulsione a viver melhor, em contato, em plenitude e que exercitemos essa prática cotidianamente. 
 
Novamente usando da sabedoria de Saint-Exupèry, “só há um luxo verdadeiro: o das relações humanas.”

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