Ana Carolina Monte Procópio

09/09/2019 00h08
 
A TRISTE ATUALIDADE DAS FOGUEIRAS
 
 
Quando o regime ordenou que fossem queimados publicamente
os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
fizeram bois arrastarem carros de livros para as pilhas em fogo, 
um poeta perseguido,um dos melhores, 
estudando a lista dos livros queimados
descobriu, horrorizado, que os seus 
haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!
A QUEIMA DE LIVROS – Bertold Brecht
 
Alemanha, 10 de maio de 1933. Berlim, Munique e outras cidades alemãs. Ardem fogueiras queimando livros considerados incômodos ou contrários ao regime que ascendeu ao governo da Alemanha. Os donos do poder de então queriam fazer uma “faxina” na literatura nacional, eliminando tudo o que representasse qualquer ponto fora da curva no pensamento nazista. No ano seguinte, 1934, já eram mais de 3.000 as obras banidas pelo regime. 
 
O movimento teve início a partir de estudantes integrantes da juventude hitlerista. A sociedade alemã não reagiu a esse fato tão grave. Acomodou-se resignadamente e calou-se. Deixou que a eliminação de ideias fosse colocada na conta do açodamento juvenil e assistiu passivamente à destruição de obras filosóficas, literárias, poéticas e científicas. O poeta alemão Heinrich Heine, indignado e comovido, proferiu frase que se tornou célebre: “Onde se queimam livros, acaba-se por queimar pessoas.” Os macabros capítulos da História mundial referentes ao nazismo comprovaram sua antevisão. Sem resistência à queima de ideias, os nazistas foram muito mais longe.
 
Séculos antes, precisamente em 1559, a Igreja Católica instituiu uma lista dos livros proibidos, o chamado Index Librorum Prohibitorum. A iniciativa deu-se a partir da reforma protestante e visava, naquele momento, afastar doutrinas consideradas heréticas, no âmbito da Contra-Reforma. As igrejas dissidentes e reformistas daquele período também se ocuparam em proibir obras consideradas contrárias aos seus ensinamentos. Entre os autores vetados pela instituição romana, estiveram: Voltaire, Giordano Bruno, Galileu Galilei, Victor Hugo, Descartes, Sartre, Simone de Beauvoir, Kepler, Maquiavel, Rousseau, Montesquieu, Dante Alighieri, Hobbes entre milhares de outros. O Índice foi atualizado pela última vez em 1948 e suprimido apenas em 1966, há pouco mais de 50 anos, portanto. Ficou mais de 500 anos em vigor, e nesse longo tempo de repressão à livre expressão de idéias, mais de 4.000 obras foram proscritas. E livros foram queimados em imensas fogueiras medievais, bem como muitos de seus autores. 
 
Muito antes disso, ainda, há registros de queima de manuscritos já no século VII a.C. entre os judeus e de livros no início do Cristianismo, por ordem do imperador Constantino. Igualmente na antiga China, no século III a.C. e na China recente, durante a Revolução Cultural de Mao. Livros judaicos foram eliminados, bem como obras que continham o conhecimento maia; a Inquisição na Espanha mandou destruir milhares de livros árabes na cidade de Granada, tudo isso no século XVI.
 
Em tempos mais recentes historicamente, a liberal nação norte-americana passou por sua fase macarthista e perseguiu artistas e escritores, destruindo obras de arte e livros, além de reputações e vidas. A União Soviética dos anos 1920 exterminou obras consideradas dissidentes do regime, com perseguição e eliminação física de autores. O Chile de Pinochet viu brilharem as fogueiras da desrazão, bem como o Brasil do Estado Novo – lembrança de Graciliano Ramos e suas Memórias do Cárcere e a perseguição a Monteiro Lobato por causa da campanha O Petróleo é nosso – e do regime militar, com sua longa lista de exilados, desaparecidos e mortos. 
 
 Os exemplos são incontáveis. Em todos esses milênios em que, em determinados momentos históricos – alguns tristemente longos – imperou o escuro da razão, a luz dos livros foi transformada em luz de fogueiras e nelas consumida. A iniciativa de queimar o conhecimento vem de longa data. Os ocupantes do poder repetem à exaustão essa fórmula, simbolizando a destruição da pluralidade, a incapacidade de convivência dos contrários e o extermínio dos que não estão de acordo com o sistema. Na verdade, trata-se da intenção de controlar o pensamento e, consequentemente, as ações das pessoas. 
 
Brasil, setembro de 2019. São Paulo. O governador do Estado mandou recolher material didático destinado a alunos do 8º ano do Ensino Fundamental, na disciplina de Ciências, que versa sobre orientação sexual e identidade de gênero, gravidez e doenças sexualmente transmissíveis. Segundo o mandatário, a determinação do recolhimento deve-se a uma postura “irremovível” do seu governo de não admitir qualquer “apologia à ideologia de gênero” e disse que irá apurar e punir os responsáveis pelo conteúdo da apostila. 
 
Brasil, setembro de 2019. Rio de Janeiro. O prefeito da cidade, ao visitar a Bienal do Livro ali realizada, identificou um livro – Vingadores - A Cruzada das Crianças – que continha o desenho de um beijo homoafetivo em uma de suas páginas, fora da capa. Por tal razão, mandou recolher todos os exemplares dessa obra e de outras que fossem consideradas “impróprias para crianças e adolescentes”. A Bienal informou que não a recolheria por não considerá-la imprópria. A questão foi parar na Justiça e o Tribunal estadual fluminense permitiu sua livre comercialização, mas a decisão foi reformada por seu presidente, que possibilitou novamente ao município a apreensão do título. Por fim, o caso foi parar no Supremo Tribunal Federal, que proferiu uma decisão correta e exemplar, do ponto de vista constitucional, humanista e democrático. O Ministro Dias Toffoli afirmou que a imagem do beijo entre dois rapazes não viola os termos do Estatuto da Criança e da Adolescência e defendeu o livre trânsito de ideias. O Ministro Gilmar Mendes, relator de outro processo com igual teor, entendeu que a atitude tomada pelo gestor do município carioca constitui censura e atribui desvalor a imagens que versem sobre relações homossexuais. O decano do STF, Min. Celso de Mello, em pronunciamento contundente contra a atitude do prefeito municipal, afirmou que a censura a livros na Bienal constitui fato gravíssimo e, ainda, que “mentes retrógradas e cultoras do obscurantismo e apologistas de uma sociedade distópica erigem-se, por ilegítima autoproclamação, à inaceitável condição de sumos sacerdotes da ética e dos padrões morais e culturais que pretendem impor, com o apoio dos seus acólitos, aos cidadãos da República.”.
 
As posturas dos gestores públicos acima ventiladas são, em essência, anti-democráticas, uma vez que a democracia exige a pluralidade de pensamentos e a diversidade dos pontos de vista. O asfixiamento das idéias não alinhadas às do poder de ocasião representa o asfixiamento da própria democracia. A queima de livros, mais que um ato pragmático, caracteriza-se como uma atitude simbólica, que passa uma clara mensagem aos súditos, cidadãos, administrados, fieis – ao povo, enfim. Os fogos atuais não são necessariamente físicos. Em tempos virtuais, basta tirar do ar, recolher o material, impedir o acesso. O que importa é presença do cerceamento do pensar e do livre expressar; em outras palavras, a censura. 
 
O fato é que, desde sempre, conhecimento significa libertação e emancipação. E isso assusta o poder que se exerce autoritariamente.  A pulsão de vida, de riso e amor, de alegria e prazer torna os seres humanos muito menos suscetíveis a integrarem a massa, a serem domados, contidos. O medo, por sua vez, escraviza, aliena, permite o domínio. O controle sobre o medo é a forma mais eficaz de submeter.
 
Não façamos como a sociedade alemã dos anos 30 do século passado, que assistiu entorpecida ao avanço da completa irracionalidade e autoritarismo sobre a sólida institucionalidade e tradição iluminista do seu país; ao contrário: estejamos atentos e fortes. 
 
Diante dos novos fogos, não é demais reiterar a frase do poeta alemão Heinrich Heine: “Onde se queimam livros, acaba-se por queimar pessoas.”

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