Ana Carolina Monte Procópio

22/07/2019 09h46
 
FOME, SUBSTANTIVO CONCRETO
 
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida, 
morremos de morte igual, 
mesma morte severina:
que é a morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
 
JOÃO CABRAL DE MELO NETO – Morte e vida severina
 
Uma criança na pequena cidade de Brodowski, no interior do Estado de São Paulo, observava atentamente o movimento de pessoas esquálidas, malvestidas e miseráveis na localidade; um sombrio e involuntário desfile de seres que mais pareciam oscilar entre a vida e a morte. Tratava-se de retirantes nordestinos, em fuga da grande seca de 1915. As imagens impressionaram fortemente o jovem Cândido Portinari, a ponto de, muitos anos mais tarde, ele utilizá-las como base na criação de uma série de quadros inspirados na temática do êxodo nordestino: Retirantes, Emigrantes, Criança Morta e Enterro na Rede.
 
Tais obras parecem saltar das telas e comovem inevitavelmente quem se dispõe a realmente vê-las. A pintura Criança Morta, do acervo do MASP, mostra uma família desprovida de tudo, que traz ao centro o pai, de cabeça baixa, segurando em seus braços o cadáver esquelético de um bebê que, de tão magro, provavelmente foi morto por desnutrição. As lágrimas que caem dos olhos dos familiares parecem pedras, concretizando a dor; a paisagem é árida e sem vida como a criança morta e a única coisa que parece viva e forte é o sofrimento dos personagens da cena. Em sua dramaticidade e representação de dor extrema, a obra lembra de alguma maneira o quadro Guernica, pintado por Picasso, que causou forte impressão em Portinari. 
 
A migração interna é também o cenário do romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, que trata da estória de uma família nordestina que deixa sua terra, o interior do Ceará, em fuga da seca de 1915. A temática da fome está presente como pano de fundo e como elemento determinante da saga de Chico Bento e sua família. Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas. 
 
Aos que tentavam sair do meio rural para ir viver na cidade, o governo cearense implantou campos de concentração – dez no total, entre 1915 e 1932, os primeiros criados no Brasil, também chamados de “currais do governo” – para recolher a população emigrante e impedir que fosse para a capital, a fim de, alegava-se, impedir saques e violência, mas na verdade também por um processo de “higienismo social”, segundo o pensamento muito em voga na época, de superioridade de alguns seres humanos sobre outros. 
Em tais espaços imperava a miséria e a fome e, em média, 150 pessoas morriam a cada dia por desnutrição, doenças e pelas péssimas condições desses lugares, sem comida, água ou assistência médica adequadas e suficientes. Os retirantes eram, na realidade, praticamente encarcerados e não podiam sair de lá para chegar a centros maiores e buscar novas oportunidades. Boa parte dos abrigados era utilizada como mão-de-obra escrava para trabalhar em grandes obras públicas. A fome e a as condições miseráveis de vida que os levaram a sair de sua terra natal eram também as razões de seu enclausuramento e morte em outro cenário igualmente nefasto, num ciclo infeliz.
 
A fome, contudo, é um flagelo que atinge a humanidade desde sempre, independente de se agravar mais em determinados momentos de extremos climáticos ou histórico-sociais, como guerras, por exemplo. O que se faz necessário é entender sua dinâmica e as razões de sua permanência.
 
Josué de Castro, pernambucano nascido em 1908, médico de formação, dedicou-se ao estudo profundo do fenômeno da fome no Brasil, a fim de entender sua causa e extensão no território nacional. Mas fome é palavra perigosa, afirmou o estudioso. E por causa de suas pesquisas e conclusões, expostas principalmente nos livros Geografia da Fome, de 1946 e Geopolítica da Fome, de 1951, foi o autor cassado pela ditadura militar por meio do Ato Institucional nº 1, de 1964, e posteriormente exilado. Viveu em Paris, de onde nunca conseguiu voltar ao Brasil, tendo falecido nessa cidade.
 
Entendeu o escritor que a questão da fome encontra suas raízes e suas possibilidades de superação em uma escolha, que há de ser feita politicamente. Tal mensagem já se encontra no subtítulo do livro Geografia da Fome, que assim está enunciado: O Dilema Brasileiro: Pão ou Aço. Considerava ele ser preciso fazer uma opção entre priorizar a promoção do desenvolvimento humano ou a do desenvolvimento industrial. Com a observação de que os dois objetivos não se excluem; antes, devem ser considerados conjuntamente. Os trechos destacados a seguir foram retirados do livro ora citado.
 
Ao retratarmos a fome no Brasil estávamos a evidenciar o seu subdesenvolvimento econômico, porque fome e subdesenvolvimento são uma mesma coisa.  O problema da fome é entendido por Castro como uma questão criada a partir de fatores históricos e suas consequentes opções, e que pode ser solucionado pela mesma via, qual seja, a da decisão política. O desenvolvimento econômico constitui a única solução real ao problema do subdesenvolvimento, com suas características fundamentais do subemprego, da subprodutividade e do pauperismo generalizado.  
 
Ainda sobre a necessidade de superação do fosso do subdesenvolvimento – e da fome, seu sinônimo –, diz: E não é possível saltar esse fosso com um povo faminto, um povo que não disponha do mínimo essencial para suas necessidades básicas da vida: um mínimo de alimentação.
 
Porque a fome corrói, enfraquece e destrói física e emocionalmente o ser humano, tornando-o incapaz de colaborar até mesmo para a sua superação. João Bosco e Aldir Blanc, na música o Ronco da Cuíca, assim traduziram essa sensação tão visceral:
 
A raiva dá pra parar, pra interromper
A fome não dá pra interromper
A raiva e a fome é coisa dos “home”.
 
A fome não é inevitável. 
 
Concordando com o mestre Caetano, inspirado em Maiakovski, na música Gente,
 
Gente quer comer, gente quer ser feliz (...) 
GENTE É PRA BRILHAR, NÃO PRA MORRER DE FOME!    
 

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