Ana Carolina Monte Procópio

24/06/2019 11h36
 
A que será que se destina?
 
 
Existirmos, a que será que se destina?
CAJUÍNA – Caetano Veloso
 
 
Com a licença do mestre Caetano, tomo de empréstimo trecho de sua linda Cajuína, feita em homenagem ao poeta Torquato Neto, para o título deste texto, pois é bem essa a indagação que se propõe: a que será que se destina? 
 
O psiquiatra austríaco Victor Frankl escreveu um livro belíssimo após o fim da Segunda Guerra Mundial, com relatos da experiência vivida em diversos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, inclusive Auschwitz. 
 
O livro chama-se Em Busca de Sentido e apresenta as bases de uma nova escola terapêutica, a Logoterapia, criada pelo autor. Ele já a estava desenvolvendo antes de ser recolhido aos campos e retomou sua aplicação depois da guerra - o livro foi publicado em 1946.
 
A beleza da sua obra está em mostrar que pode ser encontrado um sentido para a Existência mesmo em meio ao Horror. Diante das circunstâncias mais dolorosas e desumanas, ainda havia espaço para amar estar vivo e para não se entregar. 
 
Além de ser belíssima e comovente (fica a indicação para leitura), a obra é um convite à vida e uma antítese da mediocridade. Viver porque a Vida, em si, vale a pena, porque essa experiência é única e valiosa.
 
Mas o que faz com que seja valiosa e única é exatamente a forma como se passa pela vida. A mera satisfação das necessidades básicas supre as necessidades da existência, mas não equivale a viver. Vida, pra ser realmente assim chamada, tem que ter essência, tem que ser sentida, tem que mover o ser para além da satisfação do alimento para o corpo; há que ser também enriquecedora para o espírito, aqui utilizado este termo como sede do mundo interior. É preciso que nela esteja o que nos faz pulsar, transcender, sentir. Esse algo a mais que é precisamente o que lhe confere o sentido. O que nos confere o sentido de existir.
 
Albert Camus, ao escrever sobre o mito grego de Sísifo, traz uma interpretação iluminadora e incomum. Sísifo foi condenado por ter enganado os deuses e enganado também por duas vezes Tânatos, a própria morte, à seguinte punição: rolar uma grande pedra montanha acima e, ao conseguir após muito esforço chegar ao alto com seu rochedo, vê-lo deslizar para baixo por força do seu próprio peso e ter que começar tudo novamente, sem cessar, por todo o sempre. Essa penalidade imposta a Sísifo é normalmente interpretada como uma punição eterna e profundamente infelicitante, pois se trata da repetição infinita de algo que não produz resultado prático nenhum. Tal fardo, porém, pode ser visto com um outro olhar, como o fez Camus, que revelou um sentido para o aparentemente inútil, repetitivo e eterno castigo. 
 
Sísifo foi punido porque desafiou e enfrentou os deuses e porque não se entregou à morte, tendo-a ludibriado para permanecer vivo. Esse aspecto desafiador do que seria a predeterminação de sua história, do que seria a vontade dos deuses, afirma a escolha humana na condução da própria vida, com suas conseqüências. O anti-heroi grego aceita e acolhe as duas – escolha e consequencia. Decide seu destino, conscientemente, e recebe o preço a pagar por isso.   
 
O absurdo é a liberdade de escolha, é a possibilidade de criação do próprio destino. Ao fazer isso, Sísifo deu um sentido à sua existência, conferiu valor à sua vida e, portanto, justificou o próprio castigo que lhe foi imposto. O que lhe deu sentido, na vida e após a morte, foi justamente a grandeza de sua liberdade de decidir. Neste ponto, os dois autores aqui citados convergem. O valor atribuído a vida está no sentido que lhe é dado e essa é uma decisão pessoal, decorrente da liberdade de ser. Camus assim termina seu ensaio sobre Sísifo:
 
Deixo Sísifo na base da montanha! As pessoas sempre reencontram seu fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e ergue as rochas. Também ele acha que está tudo bem. Este universo, doravante sem dono, não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada fragmento mineral dessa montanha cheia de noite forma por si só um mundo. A própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração de um homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.  
 
Sim, é preciso acima de tudo compreender porque Sísifo é feliz! Se ele escolheu como viver, se ele tomou as rédeas de sua existência segundo sua vontade, se ele determinou seu destino sobrepondo-se aos ditames celestiais, não há castigo que lhe possa alcançar – ele atingiu um ponto além da cólera e da vingança divinas. O seu fardo eterno é na verdade um presente: o eterno refazer-se, aprender, prosseguir. É dele, mais uma vez, a escolha de atribuir sentido à sua punição. Ao conferir sentido à sua vida e à sua morte, Sísifo se colocou além dos deuses. 
 

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