Ana Carolina Monte Procópio

13/01/2020 08h58
 
 
QUEM TEM MEDO DA ARTE?
 
 
“A arte ilumina, é para ser compartilhada, faz crescer. Por isso mete medo.”
Gilberto Gil
 
Entre os mais remotos registros da espécie humana encontram-se expressões artísticas. A arqueologia e a paleontologia revelam manifestações dos seres humanos pré-históricos que, há cerca de 40.000 anos, já deixaram suas marcas literalmente – como mostram as imagens de mãos encontradas em várias cavernas em diferentes lugares do planeta – e figurativamente, em obras de arte produzidas ao longo de milhares de anos de desenvolvimento da espécie Homo. Desde sempre, a arte, antes da escrita, contou a História.
 
Por meio das pinturas rudimentares, das incontáveis pequenas esculturas, das ferramentas, dos utensílios domésticos, a partir do início de sua presença, a espécie Homo buscou falar de si, contar-se e deixar sua marca, tanto sobre sua vida cotidiana quanto sobre suas crenças e mitos. A arte fala da fé, dos medos, das conquistas, do modo de produção, da organização social; da cultura, enfim, de um povo e de um tempo.  
 
Pode, pois, ser considerada uma necessidade humana no sentido da sua expressão. E essa expressão, realizada de variadas formas, é também uma experiência libertária. A arte transmite, comunica, emociona, instiga. E isso vai ao encontro de toda tentativa de equalização das pessoas; o fazer artístico está do lado oposto ao da sociedade de massas. 
 
Se assim não fosse, por que razão a arte e a cultura são as primeiras instâncias a serem atacadas em momentos de autoritarismo político? Algumas respostas são possíveis de se imaginar: porque são emancipatórias; porque promovem a livre expressão do ser; porque despertam sentimentos e emoções, fazendo-nos sentir vivos e pulsantes; porque fazem pensar; porque promovem curas. Basta ver, em um olhar histórico, como as exposições, obras de arte, peças teatrais, livros, músicas, poesias, foram e são destruídos, censurados ou proibidos em momentos de ocaso democrático. Há nesse cerceamento uma vontade impossível de se realizar de que as ideias neles contidas também desapareçam, sejam extirpadas do mundo material. Mas, felizmente, não se podem esquecer as obras, as ideias que as inspiraram e tampouco o sentimento que as produziu ou que elas produziram em quem foi tocado por elas. 
 
A alagoana Nise da Silveira, médica psiquiatra graduada em uma época em que a medicina era quase que exclusivamente um território masculino, no distante ano de 1931 (foi a única mulher de sua turma), dedicou-se à cura de pacientes com distúrbios mentais por meio da arte. Tendo sido designada para trabalhar no então desacreditado setor de terapia ocupacional do hospital psiquiátrico do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, ela decidiu oferecer aos pacientes tintas, pinceis e argila para que desenvolvessem a pintura e a modelagem. Por meio desse processo, foi possível acessar o inconsciente dos pacientes, por eles próprios revelado em suas obras e, assim, evoluir em seu tratamento. Esse trabalho pioneiro de Nise da Silveira, inspirado na psicologia de Carl Gustav Jung, de quem era seguidora, revolucionou o tratamento de doenças mentais no Brasil e obteve reconhecimento internacional. O acervo das obras produzidas pelos pacientes tratados pela arteterapia encontra-se no Museu de Imagens do Inconsciente, contando hoje com aproximadamente 350.000 exemplares. A experiência inovadora de Nise, que enfrentou as maiores resistências em seu tempo, mostra o quanto a arte pode ser libertadora e curadora, na medida em que permite que o ser se expresse.
 
E tudo o que fala da livre expressão do ser incomoda quem deseja um mundo uniforme, sem imaginação e criatividade, formado por indivíduos dóceis e submissos, em uma existência distópica. A luz que joga consciência representa um perigo para a vontade de conformar e submeter, daí porque é tão duramente reprimida. 
 
O fato é que a arte existe e resiste, e sempre será assim. Haverá arte enquanto existir o humano; a arte é parte do ser que somos. “Sem arte a vida seria torpe, brutal existir” (Herbert Read).

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).