Daniel Costa

10/10/2019 09h57
BACURAU E A REVOLUÇÃO NA ARTE BRASILEIRA
 
 
* A coluna hoje abre espaço para texto de autoria da advogada e mestra em Direito, Natalia Damasceno.
 
 
            O cinema brasileiro certamente deu um grande salto neste ano. Bacurau é um divisor de águas. Antes de assistir,eu já imaginava, pelo que diziam, que seria um filme inteligente e forte e retrataria o povo deste país, mas nunca poderia sonhar que seria algo tão revolucionário! Bacurau conseguiu dominar todos os campos que se espera de uma obra prima: estética, entretenimento, simbologia e conteúdo.
 
            A união de todos esses elementos proporciona algo ressonante na cultura humana:o entretenimento de pessoas de espectros sociais abissalmente díspares. Você pode não entender a dimensão política, social e econômica que a narrativa alcança e, mesmo assim, sair do cinema entretido.Pode nem perceber ousadia estética e, ainda assim, se divertir com a vindita violenta de Lunga. E alcançar o maior número de pessoas é pressuposto de qualquer revolução.
 
            Antes de assistir, uma amigame advertiu: “foi como um ‘Black Mirror’ nordestino”, e não quis me adiantar mais detalhes. Tentei imaginar o que aquilo significava. Não consegui. Após assistir, eis a minha humilde reflexão.
 
            Há alguns dias, uma outra amiga tinha me confidenciado que não aceitaria que seus filhos fossem artistas. Poderiam ser qualquer coisa, menos artistas, porque “arte não servia para nada”. Era coisa de “esquerdista”, de “maconheiro”, de “vagabundo”. “Têm que ser médicos”, disse, “nem que seja a força”. Quanta ingenuidade da pobre alma. Enquanto o médico cuida do corpo de um indivíduo, a arte cuida da mente da humanidade. Mal sabe ela o quanto a arte é poderosa e sempre foi usada, desde os tempos mais remotos, como um braço forte do poder. Até antes da política romana do “pão e circo”. Todos os grandes eventos históricos de rupturas e transformações foram inflamados pela arte. Tome-se como exemplo a Revolução Francesa, que só tomou proporções globais em virtude da efervescência cultural, que encantou o mundo de tal forma que todos queriam seguir o modo de vida francês.
 
            Eis o poder da arte: manipular as massas enquanto elas aplaudem.O artista consegue fornecer a dose de beleza necessária para que as paixões dos espectadores passem a guiar seu bom raciocínio. É a grande batalha entre o coração e a razão, de onde sai vitorioso o primeiro. A racionalidade sucumbe indefesa.
 
            Este artifício já foi utilizado pelo Império Romano, pela França, pela Inglaterra e, atualmente, há uma completa assimilação global do “american way of life”. Governos imperialistas, sem dúvida, conhecem e dão a devida relevância à produção artística. Esta é sua verdadeira arma secreta de dominação. Conseguem fazer eventuais dominados se submeterem por livre vontade e até com prazer.
 
            Podemos ver exemplos disso nos filmes que conhecemos. Que lindo ouvir aquelas músicas em “Armagedon” e em “Fomos heróis”. Como são bravos aqueles guerreiros de “Coração Valente”, “O Resgate do Soldado Ryan”... E aqueles cenários de tirar o fôlego de “O patriota”? Todos enfrentando batalhas (que só podem ser dignas). O cérebro não ganha do coração. Ele não tem chance alguma. Ficamos entorpecidos de tal forma (por aquela beleza enchendo os ouvidos e seduzindo os olhos) que, ao vermos aqueles “heróis”fantásticos fuzilando vietnamitas sem nenhuma compaixão, criamos automaticamente uma boa razão para aquilo. Já estamos apaixonados.“Eles só podem ter um bom motivo”, guardamos no inconsciente. Sem percebermos, nossa razão já sucumbiu.
 
            Afinal, sem toda aquela arte, veríamos apenas uma potência econômica se aproveitando de fragilidades políticas do Vietnã causadas pela disputa ideológica da guerra fria com o fim de ampliar sua própria ideologia imperialista, invadindo um país subdesenvolvido e cometendo crimes de guerra contra civis. As tropas americanas, na realidade, usaram bombas incendiárias, como o “napalm”, e armas químicas, como o “agente laranja”, para destruir plantações e desfolhar as árvores de florestas no Vietnã.
 
            A arte nunca esteve do lado dos vietnamitas. Não há beleza no lado vietnamita, nem no chinês, russo, afegão, venezuelano...“Alguém conhece a cultura afegã? Russos são todos bizarros como os vilões do ‘Capitão América’”. Para esse lado, a arte concede apenas a escuridão, a feiura e nenhum espaço para explicações.
 
            Beleza – meu pobre mortal – é aquela coisinha irracional que a raça humana sempre almeja. E o artista sabe mais do que ninguém que beleza não é estática. Ela muda. Ou melhor, ele pode mudá-la para, assim, manipular a sua cabecinha de ervilha egocêntrica. O artista sabe fazer você enxergar o belo onde jamais esperaria. Conhece a loucura de utilizar as tendências estéticas do momento, sob um belo holofote e servi-las a cada um dos cinco sentidos do espectador, com alguns “detalhes” que passam despercebidos, como o fuzilamento de uma aldeia ou a execução de uma criança. O artista sabe fazer com que você veja a beleza que ele quer, acima de qualquer razão.
 
            Sem a pílula da arte, os heróis seriam criminosos, genocidas, bandidos. Os ingênuos e prepotentes são os que a engolem com maior facilidade. E o “american way of life” dominou os países latino-americanos, em especial o Brasil, de uma forma tão brutal que, mesmo que racionalmente saibamos que eles estão interessados em nosso petróleo, que tenhamos estudado sobre a política do Big Stick, da “América para os americanos” e do “Destino Manifesto”, ainda que eles nos odeiem, que não deem a mínima para nossa língua, nossa cultura, nossos nomes, nossas famílias (contanto que bebamos coca-cola e consumamos mais apetrechos tecnológicos), ainda assim, amamos os americanos. Amamos parecer com americanos e fazemos de tudo para isso, até plásticas.“Venezuelanos? Peruanos? Bolivianos? Nordestinos? São pobres, são feios. Somos amigos dos americanos”. Cabe aqui a frase de um conhecido educador brasileiro: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”.
 
            Bacurau expõe esse sentimento medonho, que cunhamos carinhosamente de “complexo de vira-lata”. No filme, os forasteiros cariocas se identificam mais com o grupo estrangeiro do que com a comunidade local. “Quem nasce em Bacurau é o que mesmo?”.
 
            Nem sabem por quê, tadinhos. Mas queriam ser como eles. Não queriam ser como os de Bacurau. Queriam fazer parte do lado “mais belo”, do lado branco, que fala inglês, que tem dinheiro e apetrechos modernos. E não só os cariocas. O prefeito da cidade também havia convidado o grupo de genocidas norte-americanos e providenciado um carro cheio do bem mais precioso para a comunidade: água.
 
            Quanta simbologia. Quanta carapuça. Quem não enxergou naqueles cariocas uns radialistas de São Paulo, um juiz, um economista. Quem não enxergou no prefeito um perfeito presidente?
 
            Muitos nem percebem estes símbolos. Mas engolem a pílula mesmo assim. E, por isso, Bacurau é revolucionário. É o levante da arte contra o opressor. É a arte tomando o lado dos oprimidos. É a arte concedendo seu holofote e dando sua beleza à cultura nordestina. E como foi fiel à nossa cultura nordestina, a nossos corpos marcados do sol, a nosso sotaque.
 
            Com sua ousadia, Bacurau e Lunga não vingam apenas o Nordeste, mas todos os oprimidos da humanidade que por muito tempo amarguraram fora dos holofotes, em meio a feiura e a total despersonalização.
 
            No início do filme, intoxicados que estamos com a identidade de um povo estrangeiro, ao nos vermos na tela, ficamos chocados, envergonhados. “Somos nós ali? Mas tão depravados, tão nus, tão... nós”. Eis que o artista faz sua mágica: no fim do filme, já estamos apaixonados por nós mesmos e queremos vingar quem nos fez sentir vergonha, quem nos fez matar nossos irmãos. Viramos bravos cangaceiros. Afinal, quem nasce em Bacurau é gente! “Degola o gringo, Lunga! Eles já não merecem nossa compaixão”!

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