Cefas Carvalho

28/08/2019 00h20
 
Minha mãe e o rato
 
 
Minha mãe disse que há um rato na casa dela. Mais exatamente, na cozinha. E que está sem dormir por causa disso há dias. Ela não o viu nenhuma vez, mas, tem certeza que é um rato. E apenas um.
 
Bebendo café com ela, relatou-me com detalhes todas as evidências que um rato se instalara na cozinha.
 
Mas, vamos às explicações necessárias: mamãe, mulher forte e determinada,  mora sozinha há anos, não obstante os 70 anos bem vividos, dedicados em grande parte à tarefa – bem sucedida – de criar e educar os três filhos. Papai morrera havia duas décadas. Ela mora sozinha porque quer, pois os três insistimos para ela morar com um de nós. Ela prefere sua casa e sua privacidade.
 
Contudo, o rato – sequer visto – trincara a até então indestrutível tranquilidade de minha mãe. Comprei três ratoeiras e queijo. Pacientemente instalei-as em locais diferentes da casa, em lugares onde ela própria não se machucaria, mas, um rato, pelo menos eu pensava, haveria de estar.
 
Três dias depois as ratoeiras estavam inalteradas. Este rato é esperto, deduziu minha mãe. Voltei a questiona-la, com a delicadeza que ela e a situação mereciam, sobre a existência de tal camundongo. Ela elencou as, digamos, provas, da ação do rato: viu uma sombra pela casa, se escondendo entre os vãos; ouviu um guincho na cozinha (Não era a panela de pressão, mãe?, perguntei); os sacos de açúcar e arroz apareciam com pequenos furos. Enfim, provas cabais da existência do animal que estava tirando o sono de minha mãe, e, por conseguinte, de seus filhos, netos e vizinhos, já que esse passou a ser o assunto único de sua conversa e responsável por irritações que ela jamais apresentou.
 
Meu irmão deu a ideia e eu não apenas a aprovei como parti para a ação: arranjei para minha mãe um gato.
 
Ela deu a ele o nome de Tom. Deduzi que ela já tratava o rato como Jerry. Se eles se comportarem como no desenho animado, o problema vai continuar, pensei. Como meus irmãos estavam otimistas, me tranquilizei confiante que o problema seria resolvido em pouco tempo graças ao instinto caçador do felino.
 
No almoço de domingo, dias depois, mamãe mostrou-se irritadiça e quase colérica. Não apenas o gato Tom não conseguira capturar o rato (Jerry?) como ainda se atrevera a mordê-la e arranha-la. Argumentamos que o gato era novo, jovem, aquelas eram tentativas de brincar. Este gato (ela não o chamava mais de Tom) não apenas não consegue pegar o rato, que é muito mais esperto e ágil que ele, como ainda quer me machucar.
Meu irmão mais novo ventilou, com luva de pelica e quase em um murmúrio, se não havia a possibilidade do gato não ter apanhado o rato pela simples razão de não existir nenhum rato (já que nunca visto). Minha mãe arregalou os olhos como se gritando: Vocês estão achando que eu estou ficando louca? Meu irmão correu em tirar o prato da mesa e lava-lo e eu tratei de colocar mais ratoeiras para tentarmos capturar o roedor. E meu irmão mais velho teve de levar o pobre gato, tratado como inepto, embora.
 
Propomos a minha mãe ela passar uns dias na casa de um dos filhos. E deixar o rato aqui mandando na minha casa? Jamais!
 
Preocupados com a saúde e a irritabilidade de mamãe, eu e meus irmãos nos reunimos para pensar o que poderia ser feito. Várias ideias, algumas bem idiotas, vieram à tona. Não chegamos a nenhuma conclusão. Ficou decidido que eu, que tinha mais jeito com minha mãe, faria com que ela se deixasse ser levada a um médico, a um tratamento profissional adequado. Com esta ingrata missão e esse peso, fui à casa dela em uma tarde de sexta-feira, imaginando encontrá-la tensa, com olheiras, irritada, como vinha acontecendo havia algumas semanas.
 
Em vez disso, dei de cara com minha mãe serena, tomando chá de hortelã e querendo conversar sobre a novela.
 
Curioso, entre um gole e outro do chá, perguntei, reticente: Mãe, e o rato?
 
Ah, meu filho, ele foi embora – respondeu, tranquilamente.
 
Pensei em perguntar como ela sabia que ele tinha embora. Que evidências a levaram a concluir isso. Mas, meu bom senso era mais poderoso que minha curiosidade. O importante, afinal, era mamãe estar bem.
 
Ela registrou que havia jogado fora as ratoeiras e disse que iria fazer carne assada no domingo, que eu chamasse meus irmãos e todas as noras.
Despedi-me com um beijo, intrigado com a sequência de acontecimentos (ou de não-acontecimentos posto que o rato que fora embora sequer tinha sido visto, ou seja, provavelmente nunca esteve naquela casa). Ao fechar o portão da casa, senti uma rajada de ar nos meus pés, e ao abaixar a cabeça, não vi, mas percebi, uma sombra se movendo em alta velocidade.
 
Deve ser apenas uma impressão minha, pensei. Ou talvez não.
 

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