Andrea Nogueira

14/08/2019 15h51
 
É melhor morrer na luta do que morrer de fome 
 
Lá no Estado da Paraíba, há mais de trinta anos, uma mulher se destacou porque teve a ousadia de falar alto o bastante para incomodar muitas pessoas. Sua vida e trabalho apesar de ter aborrecido alguns, também foi veículo de direitos e esperança para outros. Numa época em que o trabalho escravo permanecia tolerado pela sociedade, pois vestia roupagem de legalidade nas usinas de açúcar, uma senhora inquieta por justiça e igualdade não conteve seu ânimo de testemunhar a dignidade dos trabalhadores rurais. E uma luta por direitos trabalhistas começou a ser travada sob a maestria da Dona Margarida.
 
D. Margarida herdou da flor uma fragilidade natural misturada a uma imensa capacidade de adaptação. Assim como a flor, D. Margarida é perene. Mas em algo diferem: a flor, mesmo com toda a sua formosura, é de cultivo simples, enquanto D. Margarida tinha ideias difíceis de cultivar, especialmente porque estavam forjadas na complexidade da luta pelos mais fracos. Mas D. Margarida é perene.
 
Num país grande como o Brasil, poucos realmente se importavam com as pessoas que trabalhavam no campo. Os homens e mulheres rurais eram invisíveis apesar de serem os responsáveis pela comida no prato de todos os brasileiros. Ainda hoje vivem sob esta invisibilidade.
 
Se na cidade já era difícil trabalhar, quanto mais no campo. Se nas cidades, debaixo dos bigodes do poder judiciário, ministério público e ações estatais os direitos dos trabalhadores já eram desrespeitados, quanto mais no campo. 
 
Os homens e mulheres campestres nunca foram realmente reconhecidos como pessoas imprescindíveis ao sustento do país. Mas uma flor entre seus vinte e trinta e cinco anos de idade resolveu chamar a atenção da sociedade. Ela existia. Trabalhadores rurais existiam. Eram pessoas titulares de direitos. Eram importantes e imprescindíveis para o Brasil.
 
D. Margarida foi a primeira mulher a presidir um sindicato rural. Falou tão alto em nome dos trabalhadores do campo que eles mesmos passaram a acreditar na força que tinham. Falou tão alto que incomodou. Falou tão alto que foi calada. Aos trinta e cinco anos de idade, foi atingida com um tiro no rosto, enquanto estava na porta de sua casa. Nem seu filho e marido foram poupados da cena, quais assistiram inertes tamanha brutalidade.
 
Mas D. Margarida é perene, assim como a flor.
 
O crime bárbaro ocorreu em 1983. E desde o ano 2000 um movimento formado por pessoas inspiradas em D. Margarida leva reivindicações e propostas das mulheres campestres para o centro do poder, sempre com foco na igualdade de gênero, combate à fome e à violência. Este movimento é conhecido como a Marcha das Margaridas. Não se trata de um movimento político partidário, mas conta com o apoio de políticos e partidos que reconhecem a existência e importância das trabalhadoras rurais. Conta também com o apoio da sociedade que se reconhece naquelas mulheres. Conta com quem as respeita e sabe que não são invisíveis. A Marcha das Margaridas é de todas as mulheres do campo para todas as mulheres e homens do país.
 
Caminhando unidas, falam como aquela flor que lutou por mais direito para todos, falam alto. Falam, gritam, cantam e passam uma mensagem clara para todo o Brasil: elas existem e são titulares de direitos.
 
Três meses antes de sofrer o atentado na frente do seu filho e esposo, D. Margarida anunciou em um discurso de comemoração pelo 1° de Maio (Dia do Trabalhador): “É melhor morrer na luta do que morrer de fome”.
 
Pensaram haver matado D. Margarida. Mas, assim como a flor, ela é perene.

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