Ana Carolina Monte Procópio

09/07/2019 11h39
 
CRIANÇA NÃO TRABALHA
 
Criança não trabalha, 
Criança dá trabalho.
CRIANÇA NÃO TRABALHA – PALAVRA CANTADA
 
Esses versos lúdicos e bem-humorados do grupo infantil Palavra Cantada expõem uma constatação muito acertada: a de que criança não deve trabalhar. E, sim, criança dá trabalho. É essa mesmo a idéia. Crianças demandam tempo, dedicação, cuidado, presença, atenção; amor, enfim, em todas as suas formas.  
 
A questão que se pôs recentemente no cenário político brasileiro foi a aparente dicotomia entre trabalho x rua. Em outras palavras, foi defendido que a alternativa para a criança não estar na rua e em contato com drogas seria o trabalho precoce. Essa aparente disputa, no entanto, não resiste a um olhar mais aprofundado. 
 
Há duas ponderações que se apresentam de imediato para reflexão em contraponto à posição acima: - a de que o trabalho da criança não é a melhor opção contra a possibilidade de a criança estar vivendo em situação de rua, e - a de que o trabalho infantil só alcança, em sua quase totalidade, as crianças que integram famílias de renda mais baixa. Ou seja, há mais uma face cruel na questão do trabalho infantil que é a questão social, inafastável em qualquer abordagem que se pretenda honesta sobre o tema. 
 
Na porta do campo de concentração de Auschwitz havia um portal com uma frase que dizia que o trabalho liberta (Arbeit Macht Frei, esta é a frase). Parece uma grande e terrível ironia glorificar o trabalho como elemento libertador em um espaço de confinamento, privação e morte. O trabalho liberta? Sim, liberta. Desde que seja um trabalho que promova a dignidade do ser, ou que pelo menos não a afronte ou tolha. 
 
E o trabalho infantil é exatamente isso: uma prática que tira do ser ainda em formação sua dignidade e suas chances futuras, na medida em que impede seu pleno desenvolvimento. Esse é o cerne da discussão. O trabalho infantil é incompatível com o desenvolvimento integral, saudável e completo do ser humano, em seus aspectos físico, emocional, intelectual e mental. Defender o contrário disso significa ignorar ou não levar em consideração todas as necessidades dessa fase da vida humana, em que se firmam as bases para a vida adulta e admitir que crianças sejam privadas do que é seu direito.
 
O outro ponto é que as crianças que são postas para trabalhar na infância normalmente o são em atividades completamente impróprias para seus corpos pequenos e suas mentes imaturas, e em condições muitas vezes piores que as que são impostas aos adultos e quase sempre o fazem por necessidade de contribuir para o sustento da família. E que não se confunda trabalho infantil com algumas vivências esporádicas de empreendedorismo infantil patrocinado pelos pais, como a venda de brigadeiros entre os coleguinhas de escola, por exemplo. Esse, a propósito, foi um argumento utilizado recentemente para justificar a ausência de problemas com relação à criança que trabalha!!! 
 
Voltando à realidade, dados mostram que o trabalho infantil normalmente faz parte de um cenário maior que inclui pobreza, privação, necessidade, fome, abusos de toda ordem, e, como conseqüência, uma espécie de condenação. 
 
Condenação a uma existência alienada e sem perspectivas, posto que desde cedo podada em suas potencialidades. Ao trabalhar, a criança quase sempre deixa de estudar – outro ponto comprovável estatisticamente –, uma vez que se está falando, em sua mais que absoluta maioria, em crianças pobres e, ao fazê-lo, estas pessoinhas perdem a possibilidade de ter uma vida melhor para si e para os seus. A rede da ignorância os prende e prenderá pelo futuro a uma vida de não-possibilidades. Veja-se, não se trata de impossibilidades, pois as crianças devidamente educadas e atendidas em suas necessidades via de regra podem, sim, conduzir seu destino. Mas, sem educação, sem preparo e investimento na fase da infância, certamente essas possibilidades desaparecem, tornam-se não-possibilidades.  
 
Saint-Exupéry escreveu no seu livro Terra dos Homens, na página final, a respeito de uma criança que ele vê com seus pais: “Daqueles pesados animais havia nascido um prodígio de graça e encanto. (...) E disse comigo mesmo: eis a face de um músico, eis Mozart criança, eis uma bela promessa da vida. Não são diferentes dele os belos príncipes das lendas. Protegido, educado, cultivado, que não seria ele? Quando, por mutação, nasce nos jardins uma rosa nova, os jardineiros se alvoroçam. A rosa é isolada, é cultivada, é favorecida. MAS NÃO HÁ JARDINEIROS PARA OS HOMENS. MOZART CRIANÇA IRÁ PARA A ESTRANHA MÁQUINA DE ENTORTAR HOMENS. (...) Mozart está condenado. (...) É alguma coisa como a espécie humana que está ferida, que está lesada. Não creio na piedade. O que me atormenta é o ponto de vista do jardineiro. (...) É Mozart assassinado, um pouco, em cada um desses homens.”
 
Nada descreveria melhor o destino dessas crianças arrancadas de suas infâncias para um momento para o qual não estão preparadas. São milhões de Mozarts sendo enviados para estranhas máquinas de entortar homens!...
 
Cada pessoa que defende que uma criança não trabalhe e se dedique ao estudo e ao seu crescimento e desenvolvimento plenos é, em certa medida, um jardineiro de homens, como descreveu Exupèry.  Que o sejamos, pois, todos nós. 
 
E se essa visão parecer muito utópica, então tomemos de empréstimo a ideia de Eduardo Galeano: “A utopia está no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte se distancia dez passos mais além. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.” Se é assim, que a utopia nos faça caminhar.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).