Daniel Costa

25/04/2019 11h02
A ROLETA RUSSA DA EXISTÊNCIA
 
Feriado de páscoa. Estou em Lagoa Salgada, na fazenda Bom Des-canso que fica na região agreste do Estado. No sábado, eu e a parentela aproveitamos para ir à localidade chamada Pitombeira, sítio próximo onde o meu avô materno morou, antes de se deslocar pra Natal a fim de iniciar os estudos. Lá, residem familiares, primos da mamãe. E uma tia. A tia Júlia. 
 
Levando em conta as condições financeiras dessa parte da árvore genealógica, ela, a tia Júlia, até que está bem cuidada. Nonagenária, cabe-los longos e brancos bem penteados, rosto comprido, nariz aquilino igual ao do vovô. Ela quase não ouve. Frágil, não consegue andar, razão pela qual passa o dia inteiro deitada, combalida num quarto pequeno feito caixa de fósforo. Seu vestido de um só tom combina em tudo com a simplici-dade do ambiente.
 
Alguém chega trazendo um copo d'água. Um vendedor desponta na janela oferecendo carne. As imagens de santos católicos, espalhadas pela casa, refletem o padrão das famílias humildes do interior, que se agarram à fé para atravessar as agruras da vida. A cacimba, em reforma, visível através da porta aberta da cozinha, chama a atenção da minha esposa, que enjoada procura algo pra se distrair. "Reflexo do programa Cisternas do governo federal", alguém comenta em tom propagandístico.
 
A decrepitude traz um sentimento de pena. A pobreza também. As duas coisas juntas causam tristeza. Existe explicação, ou tudo não passa de algo como uma roleta russa da existência? A minha vida, num certo sentido, tem relação com o esforço do vovô? A sobrevivência da tia da mamãe, nesse estado de penúria financeira, faz parte do irracional? 
 
Curioso é que, apesar das condições econômicas um tanto melho-res, o meu avô faleceu cedo, enquanto que a sua irmã, nascida e crescida na adversidade, já beira os cem anos, em companhia dos filhos e netos: mo-toristas, vendedores, donas de casa, que longe dos planos de saúde e das enfermeiras particulares, cuidam dela sem cogitar destino semelhante ao dos idosos de "A balada de Narayama".
 
A neta da tia Júlia se aproxima e faz um afago na sua cabeça. Olhos marejados, emocionada, nem tanto à vista da chegada dos parentes "importantes", que quase nunca aparecem; mas possivelmente com o sig-nificado dessa visita, que traz o cheiro das despedidas. 
 
O enjoo da minha esposa aumenta. É a gravidez. Hora de partir. O carro balança como que dançando um rockabilly pelas estradas esburaca-das do agreste. E, em pensamento, com a cabeça invadida pelos dias de celebração do renascimento de Cristo, rogo para que os insondáveis ca-minhos da existência não estorvem muito mais a vida da tia Júlia. 

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