Cefas Carvalho

21/11/2018 00h29
 
Impressões sobre o livro de contos ´A face serena`, de Maria Valéria Rezende
 
 
Quando escrevo sobre literatura, à guisa de resenha de livros que leio ou filmes que assisto, costumo dizer que o faço por puro instinto, já que não tenho vocação para textos acadêmicos, que se propõem a uma análise mais cerebral, como se desmontando as engrenagens de um relógio. Minhas análises são totalmente passionais, posto que não desejo conhecer ou revelar o mecanismo de funcionamento do relógio, mas, externar o impacto que o relógio teve sobre mim.
 
Dito isso, e a confissão que escrevo somente o que me impressionou, vamos ao objeto da resenha, digamos, literária: o livro de contos “A face serena”, de Maria Valéria Rezende. A autora já é celebridade no mundo literário nacional, vencedora de prêmios e que, felizmente, há muito já passou no irritante rótulo de “freira que escreve”. Maria Valéria, como se sabe, é uma das mentoras e entusiastas do coletivos de escritoras Mulherio das Letras, que acabou de ter sua segunda edição no Guarujá, em São Paulo, e milita culturalmente na Paraíba estendendo sua presença marcante em outros Estados. Tudo isso sem esquecer o que realmente importa, como dizia Hemingway: escrever. Publica livros com mais assiduidade que a média dos autores nacionais e varia os gêneros, saindo-se bem em todos.
 
Para quem já tinha lido dela os romances “Outros cantos” e “Quarenta dias”, a expectativa em sorver os contos era imensa. Histórias curtas podem ser a sagração ou perdição de qualquer escritor, como se sabe. E Maria Valéria se sai - muito - bem desta prova. Nos 3 contos que compõem o livro de 156 páginas temos um painel rico em histórias repletas de humanidade, piedade e uma visão realista da vida. 
 
Nos primeiros contos vemos uma certa aura "rural", com personagens sertanejos vivendo problemas típicos da região (fome, sede, falta de qualidade de vida, abandono) com os temas e termos afins da localidade (mandacarus, xique-xiques, avôs criando netos, romances fugidios, uma esperança que nunca morre, partos) e logo no primeiro conto, "Chuva", Maria Valéria dá a chave conceitual deste início de obra, ao se referir aos protagonistas como "despossuídos de letras e de palavras".
 
Aos poucos e de forma sutil os contos começam a ganham tons mais urbanos e de referências literárias. Se nos contos iniciais ecoavam José Lins do Rego e Graciliano Ramos, aqui já temos um "clima" que remete a Clarice Lispector. A protagonista de "Juiz não entende", Alzira, lembra as heroínas dos contos de Clarice. "Teia de aranhas" também remete à autora de "A paixão segundo G.H".
 
Com o urbanismo se fazendo presente, os contos ganham São Paulo e Rio de Janeiro como cenários. Nada mais normal, tendo em vista que a autora, uma paulista de Santos radicada em João Pessoa, capital paraibana, passou a vida batendo pernas pelo Brasil e Mundo. E certamente, devorando literatura. O que explica a paixão quase devota que Maria Valéria empresta aos contos que tratam direta e explicitamente do fazer literário, como "O crítico", "A crise", "O tipógrafo", "Da Lapa ao Cosme Velho" (homenagem a Machado de Assis) e "O perfeito bibliotecário", que evoca, claro, ao argentino Jorge Luiz Borges, santo padroeiro-literário de todos que veneram este ente chamado Biblioteca, como este que aqui escreve e a autora, claro.
 
Outra citação literária que merece registro é "Requadrilha", onde Maria Valéria interpreta e redimensiona em forma de conto o poema clássico de Drummond. Vale registro também o conto "Pelas superfícies", homenagem à fotografia e especificamente ao filme "Blow up", de Antonioni, inclusive citado no texto.
 
A qualidade dos contos é alta e não se registra altos e baixos como é comum entre livros extensos do gênero, principalmente quando as histórias são autônomas, não interligadas. Alguns, mais curtos, foram escritos assim de maneira proposital, para confrontar o leitor e nocauteá-lo rapidamente, com um punch. Outros, mais longos, pedem lida mais atenciosa e acabam sendo os mais ousados e talvez melhores. Destacaria entre esses "O muro", distopia bem parecida com o Brasil atual, e "Conto de Natal", sobre relações humanas e expectativas, que é de uma sensibilidade impressionante e olhar humano apurado que a autora tantas vezes já mostrou.
 
O livro termina com o conto que lhe dá título, mais um texto urbano sobre expectativas, fotografia e comportamento humano. Fecho ideal para a obra, que começa na seca nordestina e termina com uma fotógrafa que viaja mundo afora. Pode não ter sido proposital, mas acabou sendo uma analogia sobre expansão dos horizontes e ambições de vida. 
 

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