Valério Mesquita

02/11/2017 01h40
Câmara Cascudo, em sua Acta Diurna publicada em "A REPÚBLICA", em 13 de outubro de 1945, dizia: 
 
"Não há trecho de terra mais sagrado para nós. Foi o primeiro núcleo industrial da Capitania e a região mais revirada pela guerra e molhada de sangue. Ali viveram os filhos e descendentes do fundador da Cidade do Natal. Ali lutaram Felipe Camarão e Henrique Dias. Ali viveu na tranqüilidade André de Albuquerque. 
 
Lutas, festas, crimes, atrocidades, riquezas, alegrias, orgulhos, poderio, tudo passou como poeira ao vento solto. 
 
Restam as ruínas negras, guardando a lembrança sem pausa do martírio. Sem túmulo, rondam, no silêncio da noite tropical, as almas dos sacrificados. 
 
A Capela era o cemitério aristocrático dos Albuquerque Maranhão. E um altar inteiro, devocionário de religião instintiva, como os heróis que se dedicam ao Deus do Céu e ao Rei da Terra." 
 
Em 1985, a Capela de Cunhaú foi restaurada pela Fundação José Augusto com o apoio das Fundações Pró-Memória e Roberto Marinho. A tarde festiva do seu ressurgimento, foi a maior emoção que vivi ao longo dos cinco anos que passei na F.J.A. 
 
Ali há o convívio equilibrado entre o místico e o humano. Território livre da fantasia, Cunhaú é o grande palco onde melhor se revela a alma de uma época e os seus valores essenciais. Numa singular procissão de lembranças, hoje, os gestos, os passos, as silhuetas dos que povoaram o templo e as cercanias se eternizam. Cunhaú exerce sobre nós um poderoso fascínio, uma paixão obscura e recôndita, nunca aplacada nem satisfeita, a conduzir a imaginação em viagens lendárias e míticas, ao universo feudal dos Albuquerque Maranhão, dos fidalgos, dos colonos, dos escravos, dos religiosos, dos índios e dos invasores, como se tudo ainda estivesse suspenso no ar, como nos versos de Manoel Bandeira. A reflexão dessas paredes da Capela de Nossa Senhora das Candeias nos conduz a essa pátria dos sonhos, terra das ilusões, de almas taladas à ferro e a fogo, como se fôra um desejado e atingível Paraíso Perdido. 
 
Enfim, evoco a Capela de Cunhaú, neste canto de página emergido do escuro nebuloso e mágico, engrandecida na reconstituição de arquitetos, engenheiros, pedreiros e serventes, todos historiadores manuais de sua magnitude esplendorosa. 
 
Hélio Galvão, à maneira proustiana, diz que o tempo perdido pode ser procurado. Talvez até recuperado. O poder da evocação pode fazer o milagre de repassar aos nossos olhos a paisagem que desapareceu, as pessoas que já não vivem ou refluir aos ouvidos a voz emudecida e trazer de novo à memória, aos pedaços, episódios, fatos, gestos, modos que não vimos nem participamos. 
 
A necessidade da restauração da Capela era um desejo acalentado há muito tempo. A decisão política culminou com a determinação do então Presidente da SPHAN-Pró-Memória, Dr. Marcos Vinícius Villaça, através da visita à mesma conosco acompanhado, em princípio de 1985. Adotamos como critério a reincorporação dos elementos antigos constituintes da mesma, como a lápide, a pia de água benta, local do sino e finalmente a imagem de Nossa Senhora das Candeias, sua padroeira, com a finalidade de mantermos acesa, para gerações futuras, a chama que testemunha nosso passado histórico. 
 
Ver a Capela hoje é ouvir, é sentir. Por isso, ouçamos Cascudo, novamente, que dizia em 1949, pedindo a sua restauração: 
 
"O Forte dos Reis Magos e Capela de Cunhaú tem sido constantes tão vivas e permanentes na minha atividade provinciana como os dois movimentos fisiológicos da respiração. 
 
A Capela de Cunhaú é o santuário do Rio Grande do Norte. 
 
Lugar de morte pelo ódio e em louvor da fidelidade à tríade antiga consagradora, a Deus, ao Rei e à Família.“
 
Era a antevisão de Cascudo há 45 anos atrás. O apelo emocional depois atendido. 
A Fundação José Augusto, ao restaurar em 1985 aquele relicário, ressuscitou um desfile sonoro, a paisagem das almas, o firmamento de sonhos, o chão dos túmulos que guardam os espíritos. Enfim, resgatou a memória histórica do Rio Grande do Norte.
 

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