Daniel Costa

25/10/2017 10h29
Já dizia o velho Marx que é preciso ver além da aparência das coisas. Essa afirmação me parece ser um bom ponto de partida para analisar o julgamento do Supremo Tribunal Federal relativo ao caso do senador Aécio Neves. Os ministros entenderam que caberia ao Poder Legislativo a palavra final  sobre  a eficácia das medidas cautelares que atrapalhassem o exercício do mandato parlamentar. Nesse contexto, a sobrevivência do político mineiro ficou por conta do Senado Federal, que deliberou pela preservação do seu mandato.  
 
Em termos jurídicos, essa era mesmo a decisão a ser tomada pelo STF. A Constituição Federal prevê expressamente que no caso de prisão de congressista, a Casa ao qual ele pertence precisa votar para decidir se autoriza ou não a prisão. Daí porque, também se deve entender que as decisões que imponham medidas cautelares, que interfiram no exercício do mandato, precisam igualmente ter o aval do Legislativo. No caso de Aécio Neves, assim, por mais que se suspeite das suas falcatruas, não seria juridicamente aceitável que aquela Corte Constitucional colocasse areia no conteúdo da Carta Magna para julgar com apoio num entendimento meramente moral. De maneira que, dentro desse contexto, não poderia ser mais acertada a decisão que jogou a bola para o Senado. 
 
Mas o problema não está exatamente no teor dessa decisão do Supremo. O nó górdio, na verdade, surge a partir do momento em que se percebe que somente agora, no caso do senador mineiro, é que a Corte Maior resolveu julgar com base na letra da Constituição. Antes disso, outros casos em que se verificava explícita ofensa aos artigos do Texto Federal foram simplesmente deci-didos a sua revelia. Ao menos era isso que parecia acontecer ao se verem decisões em que mandatos de parlamentares foram postos em xeque, sem que tenha havido o carimbo de quaisquer das casas legislativas. A fundamentação desses julgados invariavelmente passava pelo contexto da necessida-de de se combater a corrupção. O clamor popular. Algo que pode ser resumido na frase cunhada pelo ex-ministro Ayres Britto: " O Brasil vive pausa democrática para freio de arrumação". 
 
A necessidade dessa arrumação, porém,  não acabou. Os escândalos de corrupção estão aí para todos os gostos. Os casos de políticos e grandes empresários envolvidos em desmandos, inclu-indo o próprio Presidente da República, encontram-se a pulular diariamente nos jornais televisivos. Mas o Supremo, contrariando a prática e o discurso de flexibilização da Constituição a bem de uma faxina geral no país, julga agora resguardando o Texto Maior, como deveria ter feito desde sempre. 
 
Isso significa, vendo além da aparência das coisas, que por detrás da discussão entre lega-lidade e moralidade implicitamente contida nas decisões da Suprema Corte, havia, a bem da verda-de, uma outra e única questão a balizar os seus julgamentos: a questão política. As suas decisões visavam tão somente prejudicar alguns e beneficiar outros tantos. O STF fazia e continua a fazer julgamentos meramente de ocasião. 
 
Já disse Fernando Savater que uma das características da democracia moderna é que os ci-dadão são iguais. Uma igualdade que vai muito além da genealogia, do lugar de nascimento, das crenças políticas ou filosóficas. Deste ponto de vista, não há mulheres, negros, esquerdistas, direitis-tas, petistas ou tucanos. Mas apenas cidadãos livres e iguais que compartilham uma lei comum a partir da qual elegem suas trajetórias em liberdade. 
 
Por isso, quando o órgão maior, guarda da Constituição, responsável pela definição última do sentido da justiça no país, em nome da política rasteira, mutila toda essa linha de ideias para be-neficiar alguns e castigar outros, o navio da democracia moderna está trafegando em marcha à ré. E aí definitivamente começamos a viver como nos tempos anteriores à Carta Federal de 1988. 
 
A esperança, agora, é que não se chegue a algo similar ao que se deu no Tribunal de Vichy, quando os magistrados franceses feriram de morte princípios constitucionais, condenando judeus e partisans, para afagar os desejos da Alemanha Nazi. 
 
 

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