Valério Mesquita

30/05/2017 23h44

Poderia até ser o filme de Chaplin. Mas, semana passada, no feriadão, fui ver Macaíba do jeito que eu gosto: sem ser visto ou tocado, escondido na névoa do tempo. Rever e reviver as pessoas, as ruas, as casas e os lugares. Coisas amadas, fortuitas, semidesaparecidas, casuais, descuidadas, assombradas mas constantes em mim. Como náufrago, aos setenta e quatro anos, com os lapsos do cansaço, compreendi a palavra de Sanderson Negreiros de que: “na passagem do tempo – tudo passa e nada cessa”. Tudo ao meu redor, percebi, enfim, encerrava uma absoluta identidade comum: Macaíba permanece em mim como um cais de recordação.

Ruas da Cruz, Pedro Velho, da Conceição, do Vintém, da Aliança, do Araçá, do Gango, do Benjamim, do Cajueiro, as Cinco Bocas, da Cadeia, praças da igreja e Antonio Melo Siqueira, rua do Barro Vermelho, do Fio, do Pernambuquinho, Campo da Mangueira, Alto da Raiz, Trinta de Março, Campo Santo, cais do rio Jundiaí. Eis o inventário telúrico que tracei e naveguei em minha viagem de circunavegação emocional. Todos os lugares interagem como fator de unicidade vivencial porque me falam uma linguagem intimista, visual e sentimental de tudo que vivi e representei em minha terra.

Revisitei de memória o cinema Universal de Walter Ferreira; o cine teatro Independência de Manoel Corcino; o de Ranilson Costa e seu “cinegrafista” Rui Marciano, e, por fim, o de D. Terceira para dizer que em Macaíba não existem mais as casas de exibição. E nem clubes sociais como o Pax Clube e o Centro Lítero Recreativo que congregavam a sociedade local. Por igual, não existem mais banhos na maré (rio Jundiaí), que deu lugar à poluição. Hoje é o mar morto de minha ilusão, da rebentação de minha meninice, onde o navio perdido na imensidão dos sonhos é o barco do velho marinheiro macaibense João Lau.

Entre alguns sobressaltos: o desaparecimento de “Cocadinha”, baixo, atarrancado, ajudante de oficina, freqüentador habitual da Farmácia Milagrosa de Vinício Ferreira – outra figura telúrica que ajudava o folclórico “Cocadinha” a livrar-se do alcoolismo que piorava quando o apelidavam de “Açucareiro”. Nas “Cinco Bocas”, petrificados nas paredes, como chamas que a saudade semeia, estão escritos os nomes de Alfredo de Almeida, João Manteiga, Antonio Assis, D. Mocinha, Zezito da “banca de bicho”, a padaria Central de mestre Pedro e o bar “Gato Preto” de seu Vital.

“Vai trabalhar Maria Cabral”, era o dito indefectível dos mais jovens a mulher assim chamada, só para ouvir, em troca, os impropérios da velha caminhante das tardes pelo centro das ruas. Morena escura, cabelos soltos e grisalhos, mais parecia uma feiticeira raivosa só para assustar crianças desobedientes. No patamar da matriz, lembrei-me de muitos vigários. Do sacristão Adelino Moreira, personagem litúrgico extraído da bíblia para compor o cerimonial da igreja onde o padre Chacon perdoava cochilando no confessionário os pecados da cidade. O caminhão de Zé Pelado, tal e qual um Nautilus remendado, que arrecadava os detritos, não daria conta, hoje, do lixo urbano. Isto porque lá do outro lado da ponte, os limites da cidade eram assinalados pelas bodegas de Chico Bento e a de Zé Deca, cá na rua da Cruz. Ambas demarcavam os pontos cardeais de Macaíba.

Já falei em crônicas passadas, em muitos nomes e renomes que desenhavam o universo de minha terra. Igualmente, aos que são revividos nesta página eu os cumprimento da janelinha aberta sobre a imensidão da noite do meu tempo. Já era tarde quando retornei a Natal. Foi quando senti, ao chegar, uma imensa saudade de Alfredo e Nair. Ambos, neste maio de 2017, fariam 117 anos, respectivamente nos dias 23 e 30.


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