Daniel Costa

25/05/2017 17h43

Não sei se vocês conhecem Enric Marco. O cara foi uma das grandes fraudes da história espanhola.  Por pura vaidade, mentiu desbragadamente, criando um roteiro para sua vida que jamais aconteceu. Ludibriou toda a Es-panha se dizendo um ex-prisioneiro dos campos de concentração nazistas, e também um aguerrido membro das hostes republicanas, que havia combatido o regime franquista. O sujeito saiu em capas de jornais e de revistas, foi objeto de biografia, de filmes e de uma porção de outras coisas mais. Alçado à condição de representante maior dos sobreviventes espanhóis do holocausto, ele recebeu condecoração até mesmo do governo Catalão.

Depois de tudo isso, porém, descobriu-se que não fora nada daquilo, que o sujeito era um grandíssimo charlatão, e que a sua história, na verdade, foi forjada a partir de um entrelaçar de fatos dos quais ele nunca havia participado ou, na melhor das hipóteses, tinha tomado parte como mero coadjuvante.
Quem monta esse quebra-cabeça é o escritor Javier Cercas no livro "O impostor". Cercas não apenas narra o percurso da vida de Enric Marco, mas faz também um exame da sua persona, lançando mão de raciocínios para lá de inte-ressantes, um dos quais tem a ver com a impossibilidade de se analisar o perso-nagem de forma maniqueísta, na base do bom ou do mau. Algo do tipo: ou o cara foi um grandíssimo crápula, que causou um baque tremendo a um punhado de pessoas, ou, na verdade, trata-se de uma figura de quem se deve ter pena, já que não trouxe maiores problemas ao povo espanhol, contando apenas mentirinhas históricas.

Uma das conclusões de Cercas, assim, que me levou a escrever estas linhas, é exatamente a de que ninguém é de todo bom ou de todo mau. Nenhuma pessoa é só vaidade ou só verdade. O ser humano é muito mais complexo do que isso. O que significa, de outro modo, a sua incapacidade de viver com uma única máscara.

Apesar disso, os indivíduos têm a mania - talvez porque seja mesmo mais fácil etiquetar as pessoas - de avaliar todo mundo dessa forma, na base do reino da luz ou do reino das sombras, de maneira impostora. Os exemplos de Lula e de Sérgio Moro, nesse sentido, saltam aos olhos. O primeiro é, na visão de alguns, só mentira, ou, na visão de outros tantos, só verdade. Já o segundo, é só vaidade, ou puro heroísmo. Pouca gente parou para refletir e pensar que o lance pode não ser tão simplório quanto parece à primeira vista. O Sérgio Moro pode ser mesmo um grande narcisista, mas será que é somente isso? Não haveria entre o vaidoso arrogante e o bom juiz um pouco de cada coisa e de tantas outras mais? Do mesmo modo, será que entre o Lula benfeitor e o exímio enganador, não há um punhado dessas e de outras características que acabam por formar a figura do homem público?

Acredito que sim. Bem por isso, também creio que para se avaliarem os atuais acontecimentos e projetar o futuro do país, é preciso sair do maniqueísmo ideológico e tentar ver os fatos como eles realmente são: complexos, exatamente como os seres humanos. Tais e quais Lula, Moro e Enric Marco. 


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