Valério Mesquita

31/01/2017 12h33
Padre João Medeiros Filho:
 
Louvável o zelo pastoral dos bispos de Malta, publicando recentemente um documento (“Criteria for the Application of Chapter VIII of Amoris Laetitia”. Cfr. Osservatore Romano, edição de 14.01.2017, p. 7), que contém orientações sobre a autorização da comunhão aos recasados, de acordo com o capítulo VIII (cfr. Nº 336-351) da Exortação Apostólica “Alegria do Amor”. Cumpre informar que Dom Carlos Scicluma, arcebispo daquele país, perito em Direito Canônico, trabalhou durante dezessete anos na Congregação para a Doutrina da Fé. Neste dicastério, atuou como promotor de justiça sob o comando do Cardeal Ratzinger, que o manteve no cargo, quando se tornou Bento XVI. 
 
No entanto, há poucas semanas, quatros cardeais (os alemães Walter Brandmüller e Joachim Meisner, o italiano Carlo Caffarra e o americano Raymond Burke) tornaram públicas suas divergências com o Papa, em especial sobre o citado documento pontifício. Ali, o Santo Padre pede aos bispos de cada país que interpretem, segundo a cultura e a realidade local a situação dos recasados e analisem cada caso, à luz do Evangelho, perscrutando a consciência, não apenas sob a ótica da Cúria Romana. O Papa Francisco afirma: “Quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais. Em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais” (AL. nº. 3). Em entrevista (cfr. Avvenire, 17/11/2016), declarou que segue a linha do Vaticano II, de diálogo com o mundo.
 
Boa parte das discussões em torno dos ensinamentos eclesiásticos, especialmente em se tratando de assuntos disciplinares, origina-se da concepção de uma Igreja impositiva e não propositiva. A mensagem de Cristo é um convite ou proposição e não uma imposição. “Se queres ser perfeito” (cfr. Mt 19, 21ss), assim Cristo se dirigiu ao jovem rico do evangelho. Os quatro cardeais, em sua carta-aberta, manifestam ainda resquícios de uma visão da Igreja do Concílio Vaticano I (1869-1870). De acordo com seu enfoque juridicista, vertical e uniformizada da mesma, a moral católica reduzia-se a meros códigos disciplinares e mandamentos que deveriam ser aplicados a todas as esferas da existência humana, resultando num controle absoluto sobre o agir e as consciências dos cristãos. 
 
No Concílio Vaticano II (1962-1965), a Igreja passou de uma instituição identificada com a hierarquia a uma comunidade peregrina e servidora da humanidade. Ela é o Povo de Deus (não apenas o clero), Corpo de Cristo e Templo do Espírito Santo. Dela fazem parte todos os fiéis, que acolhem o dom da fé. O Evangelho deve ser a primeira referência para o ensino moral e doutrinário. A Bíblia não deve ser interpretada como um manual de moral, ditada por um Deus juiz, que ordena e proíbe, sem olhar a condição humana. Mais dialogal, o Sumo Pontífice reconhece que “nem sempre a Igreja tem respostas para todos os problemas. Os leigos (...) não devem julgar seus pastores sempre tão competentes que possam ter de imediato uma solução concreta para todas as questões, mesmo as mais graves”. (Gaudium et Spes, nos. 33 e 43).
 
O Papa Francisco tem insistido que os problemas sociais e morais não se resolvem com decisões irrevogáveis, tomadas de cima para baixo, de forma unilateral e dispostas em decretos. O seu pontificado vai libertando a Igreja da obsessão com questões secundárias e disciplinares para priorizar a opção pelos sofridos, carentes, pobres de alma, chamando a atenção, em especial, para os pecados sociais: a idolatria do dinheiro, do poder, do prazer e uma economia que escraviza e mata, os problemas ecológicos, o terrorismo, o desemprego, a fome etc. O Santo Padre afirma “que não existe pecado que a misericórdia de Deus não possa perdoar, quando encontra um coração arrependido, que pede para se reconciliar com o Pai”. Eis uma resposta serena, sábia e cristã. E acrescenta ainda, citando o apóstolo Paulo: “Tudo isso vem de Deus... que nos confiou o ministério da reconciliação” (2Cor 5,18). Ninguém pode pôr condições à misericórdia de Deus, muito menos um cristão ou sacerdote. 

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